sábado, 27 de setembro de 2014

Esperança e a petição da esperança

Foto: João R. Ripper
Escravo não podia ler. Escravo não podia escrever. Mas em 1770 Esperança Garcia mandou uma carta para o governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. 

Os Jesuítas foram expulsos do país pelo Marquês de Pombal e suas fazendas passaram a ser administradas pelo governo. Esperança foi separada do marido e de uma filha, que ficaram na Fazenda Algodões, para ser cozinheira em outra propriedade, sob os cuidados do feitor Antônio Vieira de Couto.

Lourenço Botelho deve ter caído pra trás quando abriu a missiva e lá estava uma denúncia contra os maus tratos sofridos por ela e o filho, manuscrita de próprio punho. Abaixo a carta traduzida para o português mais atual.



"Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões , aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que me  mande para a fazenda de aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.
De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia"


O ilustríssimo governador certamente não deve ter se espantado pelos castigos, mas pela carta em si, visto que uma mulher branca alfabetizada já era algo bem raro na época. Pois se hoje muitos carecem de consciência política e hesitam em cobrar seus direitos às autoridades de forma mais direta e organizada, o que dizer de algo assim vindo de uma negra na segunda metade do século 18? Um atrevimento só, deve ter ele pensado.

Este raro documento foi encontrado pelo historiador Luiz Mott, em 1979, na Torre do Tombo, em Portugal, em documentos sobre a Capitania do Piauí. Segundo ele, uma escrita de garranchos e repleta de erros ortográficos, mas valiosíssimo por se tratar da primeira petição que se tem registro de uma escrava a uma autoridade no Brasil.

Provavelmente Esperança deve ter aprendido a ler e escrever na administração dos Jesuítas e é possível ver no texto também uma tática, que foi mencionar a falta de batismo e confissões. Ela deve ter imaginado que isso sensibilizaria muito, pois o catolicismo era a religião oficial. Se Esperança era como diz um  "colchão de pancadas", nós podemos imaginar com que sacrifício escreveu a carta, que artimanhas teve que engendrar para enviá-la, o que poderia ter acontecido se fosse descoberta e como deve ter depositado nisto o significado do seu nome: Esperança.

Infelizmente a história não nos diz afinal se foram tomadas providências e quais teriam sido seus resultados práticos para ela, seus filhos e companheiras, mas o seu ato teve o poder de nos mandar um recado. Uma mensagem como aquelas atiradas ao mar por náufragos, em garrafas. E ela nos diz: Mesmo sofrendo todos os martírios e correndo todos os riscos lutamos com as armas que tivemos. Agora é com vocês!

Um comentário:

  1. Muito legal, Eliana, serei leitor voraz deste blog. Esta matéria, por exemplo, já sequestrei para meu trabalho. Parabéns.

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