segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Luísa Soares, a dor no braço, o diabo e o que nós temos com isso

De onde vem a intolerância religiosa que nos assola em pleno século 21, no Brasil? De onde vem tanto ódio? As respostas são muitas e no caso que será apresentado aqui agora aparecem várias pistas. Quem tiver olhos para ver, que veja.

Luísa em algum momento deve ter deixado escapar que era praticante de alguma religião de matriz africana e aí...

Em um belo dia do ano de Nosso Senhor de 1738, Josefa Maria, uma distinta senhora do Arraial de Antônio Pereira, futura cidade de Mariana, em Minas Gerais, sentiu uma forte dor no braço e não conseguiu abrir a porta da senzala pra dar os bons castigos que achava que eram do merecimento de Luísa da Silva Soares, que estava nesta época chegando aos 40 anos. Bursite? Tendinite? Fratura? Muitos diagnósticos poderiam ser sugeridos nos dias de hoje e mesmo há três séculos, no entanto, bruxaria foi a causa apontada como certa. A dor de sua senhora foi o início de tormentos sem fim para Luísa, que ficou conhecida como “A feiticeira do arraial de Antônio Pereira”.

Lavras auríferas que “secaram” e se tornaram improdutivas e toda espécie de acontecimentos considerados mágicos iam parar na conta da escrava, principalmente a dor de Josefa, que por nada melhorava. A doença da senhora foi a senha para que Luísa fosse barbaramente torturada por seus senhores e pelo pároco local. Até que em 1739 foi presa em 1742 denunciada à Santa Inquisição de Lisboa.

Tortura não devia ser um tema que espantasse ou sensibilizasse tanto assim os inquisidores, visto que a usaram fartamente durante toda a trevosa Idade Média, mas o caso daquela escrava brasileira impressionou os sábios doutores em assuntos de pactos com o “sete peles”, “o tinhoso”, “o manhoso” ou qual seja o nome que quisessem dar a ele, o diabo.

Em Portugal ela disse que tudo o que confessou à época da prisão o fez para se livrar dos martírios e que várias vezes pensou em se matar. Desculpem os que possuem estômago sensível, mas terei que relatar o que a contou nossa personagem principal.

Primeiro foi queimada no corpo inteiro com ferro em brasa e desfaleceu. Como Josefa não dava sinais de melhora voltaram à carga amarrando-a numa escada e ateando fogo em seus pés. Costuraram sua língua com uma agulha com quatro linhas. Apertaram-lhe a cabeça e daram-lhe pancadas, jogaram água fria e pingaram lacre aceso (aquela cera para selar cartas) sobre suas partes genitais. Ataram-na ao tronco. Ficou cega do olho esquerdo com um pau de ponta fina e a espancaram com uma espada desembainhada até quebrarem o osso do seu ombro direito.  Foi açoitada até ficar coberta de sangue e amarrada ao sol com bichos e moscas a lhe morder. Luísa foi socorrida por outros escravos que penalizados curaram suas feridas. Para finalizar, foi acorrentada e obrigada a desfilar pelo arraial (Alguém se lembra da caloura de direito pintada de negro, amarrada e obrigada a desfilar sendo puxada por um jovem branco em Minas Gerais este ano? Diante de uma caso como este de Luísa, alguém consegue medir a dimensão deste deboche?)
UFMG 2014


E assim a cativa confessou tudo o que quiseram. Confessou que preparou poções de raízes, pós, sapos, unhas de gente, cabelos... tudo, enfim, para causar dano aos seus senhores.

Seu depoimento impressionou tanto as autoridades portuguesas que chamaram testemunhas arroladas por ela, que confirmaram toda a história. Desconfiados das motivações e acusações dos senhores, decidiram libertá-la. O processo foi encerrado em 31 de maio de 1745, ou seja, sete anos de um suplício que por mais esforço que façamos não podemos calcular.

Para finalizar vamos pular os 276 anos do início do martírio de Luísa até este ano de Nosso Senhor de 2014. Em junho, o terreiro Cawé Cejá Gbé, em Duque de Caxias/RJ foi incendiado. Este foi o sexto atentado, em seis anos contra o espaço religioso e sua líder, mãe Conceição de Lissá. O que nós temos com isso? Sem mais.

Notícia completa aqui.


Fonte: Mulheres Negras do Brasil - Schuma Schumaer, Érico Vital Brasil - Editora Senac São Paulo

sábado, 27 de setembro de 2014

Esperança e a petição da esperança

Foto: João R. Ripper
Escravo não podia ler. Escravo não podia escrever. Mas em 1770 Esperança Garcia mandou uma carta para o governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. 

Os Jesuítas foram expulsos do país pelo Marquês de Pombal e suas fazendas passaram a ser administradas pelo governo. Esperança foi separada do marido e de uma filha, que ficaram na Fazenda Algodões, para ser cozinheira em outra propriedade, sob os cuidados do feitor Antônio Vieira de Couto.

Lourenço Botelho deve ter caído pra trás quando abriu a missiva e lá estava uma denúncia contra os maus tratos sofridos por ela e o filho, manuscrita de próprio punho. Abaixo a carta traduzida para o português mais atual.



"Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões , aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que me  mande para a fazenda de aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.
De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia"


O ilustríssimo governador certamente não deve ter se espantado pelos castigos, mas pela carta em si, visto que uma mulher branca alfabetizada já era algo bem raro na época. Pois se hoje muitos carecem de consciência política e hesitam em cobrar seus direitos às autoridades de forma mais direta e organizada, o que dizer de algo assim vindo de uma negra na segunda metade do século 18? Um atrevimento só, deve ter ele pensado.

Este raro documento foi encontrado pelo historiador Luiz Mott, em 1979, na Torre do Tombo, em Portugal, em documentos sobre a Capitania do Piauí. Segundo ele, uma escrita de garranchos e repleta de erros ortográficos, mas valiosíssimo por se tratar da primeira petição que se tem registro de uma escrava a uma autoridade no Brasil.

Provavelmente Esperança deve ter aprendido a ler e escrever na administração dos Jesuítas e é possível ver no texto também uma tática, que foi mencionar a falta de batismo e confissões. Ela deve ter imaginado que isso sensibilizaria muito, pois o catolicismo era a religião oficial. Se Esperança era como diz um  "colchão de pancadas", nós podemos imaginar com que sacrifício escreveu a carta, que artimanhas teve que engendrar para enviá-la, o que poderia ter acontecido se fosse descoberta e como deve ter depositado nisto o significado do seu nome: Esperança.

Infelizmente a história não nos diz afinal se foram tomadas providências e quais teriam sido seus resultados práticos para ela, seus filhos e companheiras, mas o seu ato teve o poder de nos mandar um recado. Uma mensagem como aquelas atiradas ao mar por náufragos, em garrafas. E ela nos diz: Mesmo sofrendo todos os martírios e correndo todos os riscos lutamos com as armas que tivemos. Agora é com vocês!

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Eduarda, José do Patrocínio e a "torturadora de Botafogo"


Clique aqui e leia a notícia de 11 de fevereiro de 1886.
Quando li este caso fiquei imaginando os olhos arregalados de espanto do José do Patrocínio, quando aquela moça de 15 anos, maltrapilha, cega e coberta de chagas entrou na redação do seu jornal. E acho que resolvi começar com ela a semear minhas ‘flores da cor’ justamente por ser um caso, como dizemos nos dias de hoje, midiático. Este é apenas um resumo do caso todo, que tem passagens no processo beirando o surrealismo.

No dia 11 de fevereiro de 1886, com todo o fervo do debate em torno da questão da escravidão, que afinal teria seu fim decretado dois anos depois, a escrava Eduarda, de apenas 15 anos e provavelmente desesperada por socorro tomou uma radical decisão: Procurar ajuda para denunciar às torturas a que ela e sua companheira de cativeiro, Joana, de 17 anos, eram submetidas dia sim e outro também. Denunciou sua senhora, Ana Francisca da Silva Castro, mulher de José Joaquim de Magalhães. Pessoas “de posses” que moravam na Praia de Botafogo.

A menina foi bater na Gazeta da Tarde e não por acaso. Ela pretendia ir à chefatura de polícia, mas foi aconselhada a ir ao jornal, pois “lá lhe dariam atenção” (Ah, a polícia carioca. Desde sempre acolhedora e bem conceituada). E de fato no jornal não só lhe deram atenção como auxiliaram no processo todo do caso.



José do Patrocínio
Nesta época o periódico era de propriedade do farmacêutico, ativista político, orador, escritor e, entre outras muitas coisas, jornalista, José do Patrocínio. Ele comprou o jornal em 1881 e dois anos depois, em 1883, articulou a Confederação Abolicionista unindo todos os clubes abolicionistas do país, cujo manifesto redigiu e assinou, juntamente com André Rebouças e Aristides Lobo.

Mas voltando à Eduarda, ela entrou na redação num estado tão lastimável que dele foi escrito:

“ A população d’esta capital assistiu hontem a mais uma scena triste e horrivel, que tem origem na nefanda instituição da escravidão, a que o Sr. chefe de policia tem prestado os mais relevantes serviços. Hontem pela manhã apresentou-se no escriptorio da Gazeta da Tarde uma miseravel creatura de nome Eduarda, escrava da Sra. D. Francisca Silva Castro,mulher de José Joaquim de Magalhães Castro e morador a à praia de Botafogo. A infeliz queixava-se de que tinha recebido de sua senhora os mais barbaros castigos. O rosto d’essa desgraçada creatura apresentava um aspecto horroroso: os olhos completamente fechados por causa de inflammação das palpebras; a testa coberta de chagas; a face entumecida e gottejando sangue; os pulsos cobertos de profundas feridas e largas escoriações, feitas com cordas ou qualquer outro instrumento de supplicio; no corpo e braços signaes evidentes de sevicias, alguns antigos e outros muito recentes. Mal cobria-a um vestido rasgado, que lhe deixava vêr o emmagrecido corpo, e a deixava descomposta; pois não vestia camisa. O miserando aspecto da desventurada creatura causava dó ao mais empedernido coração!” 



Joanna não podia andar e graças a todo o estardalhaço que fez a Gazeta foi recolhida da casa da senhora, mas não agüentando os ferimentos faleceu no dia 14 de fevereiro, três dias depois da denúncia de Eduarda.

Para encurtar, alegaram insanidade para dona Ana Francisca. Ela chegou a ser interditada e internada na Clínica Doutor Eiras e lá resolveu também maltratar a escrava que a acompanhava.

“... não gosto desta gente. Além disso, esta preta é também atrevida, senta-se nas cadeiras, bebe água nos copos como se fosse branca”.

Na verdade, fica claro que dona Francisca tinha uma loucura muito conveniente, que ia e vinha de acordo com a situação. Um dos médicos peritos, Dr. Teixeira de Souza, usou de ironia para definir os argumentos sobre a loucura da ré:

 “...sui generis, apparecendo e desapparecendo à vontade da defesa”.

No final de oito meses de embates entre advogados abolicionistas, matérias nos jornais, defesa escravista, peritos, médicos da defesa, veio a sentença:

“...de conformidade com a decisão do jury, foi a accusada absolvida por unanimidade de votos”.

O caso de Eduarda é emblemático e atual porque quando foi levada pelas mãos dos abolicionistas ao Sr. Dr. Monteiro de Azevedo, juiz do 11º distrito criminal, com tantas marcas evidentes de violência sem fim, e este a ouviu dando andamento ao caso, ela colocou o judiciário brasileiro na encruzilhada em que se vê até hoje, que é a de dar voz a quem sempre foi apontado como o agressor, o criminoso.

Alguns dos argumentos de Dona Francisca parecem ter saído de alguma notícia dos dias atuais, destas que colocam no caráter da vítima a justificativa para todo tipo de brutalidade: “As pretas eram perversas” e “Não bati. Mandei bater”.

Dois séculos depois temos que concordar com os peritos do caso que concluíram que “o estado normal de D. Francisca da Silva Castro é o de insanidade de espírito”... E ainda vemos como ela, muitos padecendo desta mesma moléstia!

Também fiquei imaginado a emoção do José do Patrocínio ao enxergar a tremenda coragem da garota tão frágil, gravemente ferida, para sair da casa em que era propriedade, nada além do que um utensílio doméstico, para alcançar um distrito policial ou uma redação de jornal e desnudar seu sofrimento. Esse ato é difícil para muitas mulheres hoje, em pleno ano de 2014!

Estejam onde estiverem, Eduarda e Joanna, saibam que vocês estão no jardim das ‘flores da cor!






Fontes: 

Dicionário da Escravidão Negra no Brasil - Clóvis Moura;
Revista de Criminologia e Ciências Penitenciárias- São Paulo - Ano 3 - Número 4 - Dezembro de 2013/ Janeiro - Fevereiro de 2014 - Cristiane Brandão Augusto.

 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Um jardim!

Sejamos francos e sem rodeios. No Brasil (não vou nem falar neste momento do que extrapola as fronteiras do nosso território nacional!) não é fácil ser mulher e a coisa complica muito se ela é negra. Para quem gosta (e precisa) do apoio das estatísticas está tudo comprovado em números, em gráficos, em mapas de norte a sul, dos institutos mais renomados aos trabalhos acadêmicos de graduação mais recentes. No entanto, para nós que vivemos literalmente na pele esta realidade desde que a primeira africana pisou o solo brasileiro, os pesquisadores poderiam ter economizado na busca o latim rebuscado e as contas complexas. Nós sempre soubemos.



Muita gente conseguiu escapar do manto da invisibilidade que as "histórias oficiais" sempre tentaram e todavia tentam nos jogar em cima para resistir bravamente com luta, arte, fé e atitude. Esse desconhecimento em tempos de tanta facilidade de acesso a informação é assustador. Temos uma pálida e distorcida ideia do nosso passado e desta forma, muita dificuldade para construir o nosso futuro.

Me incomoda deveras que minha filha e meu filho cresçam achando que a liberdade de que gozam hoje não foi conquistada por gente que arriscou o pescoço e sim concedida tenha sido lá com que interesse fosse. Me incomoda que não nos reconheçam como atores principais dos nossos avanços e limitem nossas crianças a história tão tímida (e vez por outra mentirosa) que é apresentada sobre elas mesmas nas escolas. Desta forma, tento aqui modestamente fazer a minha parte.

O Flor da Cor quer apenas ser mais um espaço a contar um pouquinho sobre essas moças, senhoras, idosas, adolescentes, algumas praticamente crianças, que ousaram e ousam sair do lugar subalterno a que uma parcela muito significativa da sociedade acreditava e ainda crê que devemos ocupar, como coadjuvantes das nossas próprias vidas. São mulheres do passado e do presente que formam um jardim, um imenso jardim de flores da cor!


Em tempo! Quem quiser mergulhar nas estatísticas, clique aqui e veja algumas bem ilustrativas do boletim de fevereiro do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Estatísticas e Sociais das Relações Raciais do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LAESER), coordenada pelo economista Marcelo Paixão. As mulheres ganham até 60% a menos que os homens nas regiões metropolitanas do país, mas a mulheres negras seguem na base da pirâmide social ganhando menos ainda em qualquer função.