Clique aqui e leia a notícia de 11 de fevereiro de 1886. |
No dia 11 de fevereiro de 1886, com todo o fervo do debate em torno da questão da escravidão, que afinal teria seu fim decretado dois anos depois, a escrava Eduarda, de apenas 15 anos e provavelmente desesperada por socorro tomou uma radical decisão: Procurar ajuda para denunciar às torturas a que ela e sua companheira de cativeiro, Joana, de 17 anos, eram submetidas dia sim e outro também. Denunciou sua senhora, Ana Francisca da Silva Castro, mulher de José Joaquim de Magalhães. Pessoas “de posses” que moravam na Praia de Botafogo.
A menina foi bater na Gazeta da Tarde e não por acaso. Ela pretendia ir à chefatura de polícia, mas foi aconselhada a ir ao jornal, pois “lá lhe dariam atenção” (Ah, a polícia carioca. Desde sempre acolhedora e bem conceituada). E de fato no jornal não só lhe deram atenção como auxiliaram no processo todo do caso.
José do Patrocínio |
Mas voltando à Eduarda, ela entrou na redação num estado tão lastimável que dele foi escrito:
“ A população d’esta capital assistiu hontem a mais uma scena triste e horrivel, que tem origem na nefanda instituição da escravidão, a que o Sr. chefe de policia tem prestado os mais relevantes serviços. Hontem pela manhã apresentou-se no escriptorio da Gazeta da Tarde uma miseravel creatura de nome Eduarda, escrava da Sra. D. Francisca Silva Castro,mulher de José Joaquim de Magalhães Castro e morador a à praia de Botafogo. A infeliz queixava-se de que tinha recebido de sua senhora os mais barbaros castigos. O rosto d’essa desgraçada creatura apresentava um aspecto horroroso: os olhos completamente fechados por causa de inflammação das palpebras; a testa coberta de chagas; a face entumecida e gottejando sangue; os pulsos cobertos de profundas feridas e largas escoriações, feitas com cordas ou qualquer outro instrumento de supplicio; no corpo e braços signaes evidentes de sevicias, alguns antigos e outros muito recentes. Mal cobria-a um vestido rasgado, que lhe deixava vêr o emmagrecido corpo, e a deixava descomposta; pois não vestia camisa. O miserando aspecto da desventurada creatura causava dó ao mais empedernido coração!”
Joanna não podia andar e graças a todo o estardalhaço que fez a Gazeta foi recolhida da casa da senhora, mas não agüentando os ferimentos faleceu no dia 14 de fevereiro, três dias depois da denúncia de Eduarda.
Para encurtar, alegaram insanidade para dona Ana Francisca. Ela chegou a ser interditada e internada na Clínica Doutor Eiras e lá resolveu também maltratar a escrava que a acompanhava.
“... não gosto desta gente. Além disso, esta preta é também atrevida, senta-se nas cadeiras, bebe água nos copos como se fosse branca”.
Na verdade, fica claro que dona Francisca tinha uma loucura muito conveniente, que ia e vinha de acordo com a situação. Um dos médicos peritos, Dr. Teixeira de Souza, usou de ironia para definir os argumentos sobre a loucura da ré:
“...sui generis, apparecendo e desapparecendo à vontade da defesa”.
No final de oito meses de embates entre advogados abolicionistas, matérias nos jornais, defesa escravista, peritos, médicos da defesa, veio a sentença:
“...de conformidade com a decisão do jury, foi a accusada absolvida por unanimidade de votos”.
O caso de Eduarda é emblemático e atual porque quando foi levada pelas mãos dos abolicionistas ao Sr. Dr. Monteiro de Azevedo, juiz do 11º distrito criminal, com tantas marcas evidentes de violência sem fim, e este a ouviu dando andamento ao caso, ela colocou o judiciário brasileiro na encruzilhada em que se vê até hoje, que é a de dar voz a quem sempre foi apontado como o agressor, o criminoso.
Alguns dos argumentos de Dona Francisca parecem ter saído de alguma notícia dos dias atuais, destas que colocam no caráter da vítima a justificativa para todo tipo de brutalidade: “As pretas eram perversas” e “Não bati. Mandei bater”.
Dois séculos depois temos que concordar com os peritos do caso que concluíram que “o estado normal de D. Francisca da Silva Castro é o de insanidade de espírito”... E ainda vemos como ela, muitos padecendo desta mesma moléstia!
Também fiquei imaginado a emoção do José do Patrocínio ao enxergar a tremenda coragem da garota tão frágil, gravemente ferida, para sair da casa em que era propriedade, nada além do que um utensílio doméstico, para alcançar um distrito policial ou uma redação de jornal e desnudar seu sofrimento. Esse ato é difícil para muitas mulheres hoje, em pleno ano de 2014!
Estejam onde estiverem, Eduarda e Joanna, saibam que vocês estão no jardim das ‘flores da cor!
Fontes:
Dicionário da Escravidão Negra no Brasil - Clóvis Moura;
Revista de Criminologia e Ciências Penitenciárias- São Paulo - Ano 3 - Número 4 - Dezembro de 2013/ Janeiro - Fevereiro de 2014 - Cristiane Brandão Augusto.
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