segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Um quilombo chamado Carolina Maria de Jesus!

28 de maio … A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.”(Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus).

Enganam-se os que pensam que quilombo é apenas um local para onde os negros (ou qualquer um com ânsia de liberdade) fugiam. Penso que um quilombo é, sobretudo, um local de resistência fincado no coração da hostilidade. Uma ilha cercada de rancores, raivas e ódios por todos os lados, mas que não se entrega sem luta. Sendo assim, um quilombo pode ser um lugar e também uma pessoa.

Zumbi dos Palmares era ele próprio um quilombo, assim como Dandara, Aqualtune e todos os que ali resistiram à opressão. Desta mesma forma, Carolina Maria de Jesus, a escritora catadora de lixo que registrou seu dia-a-dia na favela paulistana do Canindé em 35 cadernos, era sozinha um quilombo inteiro.

Os cadernos de Carolina viraram o livro “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada”. Resistindo em meio ao ódio e o desprezo da São Paulo da metade do século passado (e que se mostra ainda feroz nesta segunda década do século 21), Carolina expôs todas as feridas. As dela e as da sociedade doente. Ela foi descoberta quase que por acaso, quando o jornalista Audálio Dantas, do Diário de São Paulo, fazia matéria sobre um parque na capital. Ali ele soube da catadora de lixo que era escritora e, curioso, foi conferir sua produção. Impressionado, correu para o jornal e a história daquela mulher correu a cidade. 

Quarto de Despejo foi publicado em agosto de 1960. A tiragem inicial de 10 mil exemplares esgotou em três semanas. O livro foi traduzido em 13 idiomas e se tornou um best-seller na Europa e na América do Norte. A menina que cursou apenas até o segundo ano do que hoje é o ensino fundamental ficou famosa e conseguiu mudar para uma casa de tijolos no subúrbio graças ao livro, no entanto, ganhou o ódio de seus vizinhos, que no dia da mudança atiraram penicos cheios nela e nos filhos, a chamavam de prostituta negra, a acusavam de ganhar dinheiro falando da favela, mas sem repartir o dinheiro. Uma pessoa que não se encaixava. Ignorada pelos de cima, hostilizada pelos de baixo, Carolina apenas resisitia "aquilombada" em si mesma... escrevendo.



“…Eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o Jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.”  (Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus).

O sucesso é efêmero, dizem. E é verdade. Apesar da fama, Carolina Maria de Jesus, nascida em 14 de março de 1914, morreu esquecida e pobre, de insuficiência respiratória em 13 de fevereiro de 1977. Em 2014 comemoramos os 100 anos desta mulher guerreira, que nos lançou um doído grito de socorro em suas obras. Apesar dos avanços ele ainda ecoa, ele ainda dói em muitas como ela, ele ainda lateja em todos os que se importam.

“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”

A fome do corpo nós estamos aos poucos vencendo. Sair do mapa mundial da fome no mundo não é pouca coisa. No entanto, a fome por verdadeira inclusão, por verdadeira justiça, por verdadeira aceitação do outro, esta ainda está bem longe de ser aplacada. Resgatar Carolina Maria de Jesus é lembrar do que não podemos nunca, jamais e em tempo algum esquecer.

Livros publicados
•    Quarto de despejo (1960)
•    Pedaços de fome (1963)
•    Provérbios (1963)

Publicação póstuma
•    Diário de Bitita (1982)
•    Onde Estaes Felicidade (2014)


sábado, 1 de novembro de 2014

A Rainha Viúva

Se eu fosse escrever um roteiro de cinema para esta história, a primeira cena deste filme  poderia mostrar um negro fujão ainda preso em suas algemas chegando exausto ao quilombo e, auxiliado pelos hábeis ferreiros que habitavam o lugar, se libertando das correntes. Na sequência estas mesmas correntes estariam na forja e seriam transformadas em armas e instrumentos de trabalho.  Foi deste jeito, usando os próprios objetos que os torturavam para produzir o que os defendia e alimentava, que Tereza de Benguela reinou por duas décadas, de 1750 a 1770, no quilombo do Quariterê, em Mato Grosso, na região do Vale Guaporé, que ficava próximo à fronteira de Mato Grosso com a Bolívia.

Tereza é famosa. Provavelmente africana nascida na angolana Benguela, ela é tema de teses, verbete de livros e já desfilou na avenida Marquês de Sapucaí levada pelo talento do genial Joãozinho Trinta, em 1994, na Viradouro. Pelo que parece, a forja era a própria mão de Teresa, mulher do chefe quilombola José Piolho que com a morte deste passou a comandar todo o quilombo. Por isso ganhou a alcunha de ‘rainha viúva’

Tereza era uma versão de saias do alagoano Zumbi dos Palmares. Ela não dava mole. Uma vez no Quariterê para sempre nele, pois as deserções eram punidas com a vida. Um desertor poderia por em risco a sobrevivência do quilombo, revelando seu posicionamento às autoridades.

Ela era a chefe política, militar e administrativa do agrupamento que contava com parlamento, conselho da rainha e um esquema de segurança que incluía troca de armamentos com os brancos. Segundo contam, a comunidade se auto-sustentava e ainda vendia tecidos e excedentes da produção agrícola fora do quilombo. 

Vinte anos resistindo ao poder colonial não era para qualquer um, muito menos para uma mulher. O Quariterê causava enormes prejuízos aos fazendeiros locais, pois a mão de obra estava afluindo com força para suas terras. Por motivos óbvios a cabeça de Tereza era muito bem vinda pelo governo local, que junto com
os donos de escravos patrocinou a bandeira chefiada por João Leme de Prado. Depois de percorrer por um mês Vila Bela, os 30 homens comandados por João Leme atacaram a comunidade de surpresa.

Muitos morreram, outros fugiram, mulheres foram violadas pelos bandeirantes e vários foram levados à cidade de Vila Bela para reconhecimento público. Depois de serem reconhecidos por seus donos foram surrados e marcados no rosto com ferro em brasa com a letra “F” de fugidos. A 'rainha viúva' foi capturada, mas preferindo a morte às humilhações que sofreria se matou ingerindo ervas venenosas.

O Quariterê devia ser algo muito especial, pois ali conviviam negros africanos, brasileiros, índios e mestiços de índios com negros numa rica fusão de culturas. Todos fugindo da exploração, dos maus tratos, do aprisionamento. Uma integração latino-americana necessária e buscada com avidez, mas até hoje rechaçada por muitos no Brasil. O samba da Viradouro destacou essa mistura.



“No seio de Mato Grosso, a festança começava/
Com o parlamento, a rainha negra governava/
Índios, caboclos e mestiços, numa civilização/
O sangue latino vem na miscigenação”

Este ano o foi sancionada a lei que elegeu o dia 25 de julho como o “Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra”. Um trecho da justificativa diz:

“No dia 25 de julho é celebrado anualmente o Dia Internacional de Luta da Mulher Negra da América Latina e do Caribe, entretanto o Brasil não tem uma data oficial de celebração da mulher negra, sendo importante termos em nosso calendário oficial de datas comemorativas um dia para homenagear a existência da mulher negra.

No entanto, é preciso criar um símbolo para a mulher negra, tal como existe o mito ZUMBI dos Palmares, as mulheres carecem de heroínas negras que reforcem o orgulho de sua raça e de sua história, de mulheres que sirvam de espelho para as batalhas cotidianas de cada mulher negra. Desta forma apresento, como forma de resgatar a memória de uma heroína negra negligenciada pela história, a homenagem à Tereza de Benguela”

Salve Tereza de Benguela!


Clique aqui e escute o samba da Viradouro de 1994
Clique aqui e leia a íntegra do Projeto de Lei do Senado Federal.
Fontes: Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Clóvis Moura.

domingo, 19 de outubro de 2014

O bendito fruto do nosso ventre...livre!

Prisão de ventre para mim durante muito tempo foi apenas um problema de saúde na contramão da natureza, pois um corpo saudável precisa expelir o que não lhe serve. No entanto, para o Brasil, ao longo de 371 anos, um “ventre preso” era muito mais que isso.  Aqui valia a norma do partus ventrem sequitur. Traduzindo: O filho do ventre escravo, escravo seria. A mulher era levada a enxergar o ser que lhe preenchia o ventre como algo que nunca seria seu. A Flor da Cor de hoje na verdade é ele, o nosso útero.

Quando estudamos isso nos bancos escolares nem de longe nos contam o alcance desse tema. Um “ventre preso” tirava o direito da mãe sobre o filho. Dentro dele havia um feto já condenado aos caprichos, crueldades e vontades do seu senhor. Podia estar negociado e sentenciado a viver muito longe dos seus sem ao menos ter chorado pela primeira vez. Ele, o feto, já poderia fazer parte dos bens de algum defunto para ser partilhado entre seus descendentes. Ela, a cria, era parte de um rebanho, de cabeças de gado humano que só tinha um direito: Obedecer bovinamente, resignadamente.

O que fazer para não expor a futura prole à tão cruel sina? "Não vamos deixar que nasçam!" - Muitas pensavam - "
Vamos aborta-los!" - muitas faziam.  E a mortandade beirava os 80%. Qualquer semelhança com tempos atuais não é mera coincidência, pois não estamos muito distantes dos bárbaros tempos da falta de assistência à mulher no Brasil. 

E então, depois de muita pressão de abolicionistas e da comunidade internacional, no dia 28 de setembro de 1871 promulgam a Lei Rio Branco, que foi popularizada como Lei do Ventre Livre. Um texto com 10 artigos que logo de cara disse a que veio. Está lá no primeiro parágrafo do primeiro artigo, que as crianças ficariam em poder e sob responsabilidade dos senhores da mãe até os oito anos completos, quando os donos teriam a opção de receber uma indenização do Estado ou de utilizar os serviços do menor até os 21 anos!

Se você não tem oito anos seguirá meu raciocínio. Assim que se equilibrava 
sobre as duas pernas, o moleque ficava com o dono trabalhando feito um burrico de carga. Quando completava oito, mas já estropiado pela exploração do trabalho infantil, o senhor obviamente dispensava a tal indenização (600 mil réis), que era muito menos do que o escravo poderia valer e produzir como adolescente e jovem. E quando o nosso “ingênuo” (nome dado aos nascidos do ventre livre) completava 22 anos, que condições tinha ele para gozar de sua liberdade?

Mesmo com condições tão favoráveis aos senhores, as formas de burlar essa lei eram tantas e tão criativas, que não cabem aqui neste singelo texto. Basta saber que o Diário Oficial da Bahia (vejam bem, um órgão oficial!) publicou em 4 de junho de 1887, um anúncio de leilão  numa propriedade escrava nos seguintes termos:

“Alberto, 10 anos, por um conto de réis; Vicente, 13 anos, por seiscentos mil-réis; Félix, 14 anos, por oitocentos mil-réis...” E por aí vai. Dezesseis anos depois da promulgação da lei as crianças ainda eram leiloadas acintosamente  e impunemente em veículo oficial da província.

Se você de fato não tem oito anos vai seguir este meu outro raciocínio: A tão decantada mistura entre brancos e negros no Brasil nasceu da violência sexual. Obviamente que rolou sexo consentido, mas a maioria, a esmagadora maioria das escravas era sistematicamente estuprada em senzalas por senhores, seus filhos e toda sorte de homens brancos que tivessem poder sobre elas.

Experimentasse a “negrinha” não ceder aos desejos do “inhô” e não preciso descrever o que ocorria. Dito isto, o feto escravo não raro era fruto do seu algoz.

Quanto às mães, cabia a elas trabalhar para que os seus não sofressem a mesma prisão que elas. E os casos são inúmeros de mulheres que abriram mão da própria liberdade para nos raros momentos de folga juntar recursos que de verdade libertassem o fruto de seus ventres.

Perguntas: Não é isso o que continuam fazendo tantas mães que sozinhas sustentam seus lares pelas periferias do Brasil a fora? 

Quando vozes se levantam para defender com tanta virulência a redução da maioridade penal baseados nos 1,9% dos crimes que são cometidos por menores no Brasil, não estão previamente condenando crianças pobres a viver na mira das forças de repressão mais cruéis? E, em virtude do nosso processo histórico, não seriam essas crianças em sua esmagadora maioria negras? Não estão levando suas mães a questionar a utilidade e validade de suas vidas antes mesmo de virem ao mundo? E na verdade, não seriam esses os reais motivos para defenderem tais coisas?

Quando gritam para estimular o Estado a não tratar o aborto como questão de saúde pública e para não reconhecer direitos básicos conquistados por setores da população que até seus úteros tiveram negociados ao longo de meio milênio de história, a pergunta que fica é: O ventre é realmente livre no Brasil de 2014?

O útero negro é um herói sobrevivente do silencioso, secular e cruel racismo brasileiro.

sábado, 11 de outubro de 2014

Rosa Egipcíaca: A flor do Rio de Janeiro

Esta história é muito louca (alguns diriam no sentido literal!) e tão profunda em seus muitos significados que eu não teria jamais a pretensão de esgotá-la, como, aliás, não tenho com nenhuma outra. Aqui está apenas o meu olhar. E esse olho hoje bateu na negra que em 1725 desembarcou de um tumbeiro ainda criança no porto do Rio de Janeiro. Além de escrava, ela foi prostituta, beata, embusteira (o famoso 171 na gíria de hoje), aprendiz de santa, escritora e, finalmente, mais uma simples mulher negra que sofreu descrédito e anos de castigos físicos violentíssimos.

Rosa é autora de ‘Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas’, o livro mais antigo escrito por uma mulher negra no Brasil. E não fosse por mais nada, por este fato lhe rendo minhas homenagens.

Acontece que Rosa saiu da Costa da Mina com mais ou menos seis anos e ficou no Rio até seus 14 anos, quando foi levada para Minas Gerais pelas mãos do frei José da Santa Rita Durão, aquele mesmo poeta que escreveu ‘Caramuru’ e é considerado um dos precursores do indianismo no Brasil. Em Minas, Rosa se tornou prostituta e pelo visto obteve sucesso na carreira, pois aos 30 anos resolveu vender todas as jóias e roupas conquistadas e doá-las aos pobres. Fez isso depois que foi acometida por uma estranha doença que fazia seu rosto inchar, sentir dores e tumores no estômago. Tudo isso junto com uma coisa que, mais uma vez, faz minha imaginação voar. 

Pensem numa mulher negra, no século 18, prostituta, que começa a ter visões místicas com Nossa Senhora da Conceição? A força das visões tirou Rosa da “profissão mais antiga do mundo”, fazendo dela uma ex-prostituta (sim, isto existe), para torná-la beata, frequentadora assídua dos sermões, missas e ofícios, onde conheceu o padre Francisco Gonçalves Lopes, conhecido pela singela alcunha de ‘Xota-Diabos’. Ele era um exorcista e Rosa se dizia possuída por sete demônios. 
Nossa Senhora da Conceição,
pelo pintor espanhol
Estéban Murillo.


Na primeira seção de exorcismo, segundo o que está no livro de Luiz Mott (ver referências no final) ela caiu desmaiada “partindo a cabeça na pedra debaixo do altar de São Benedito". Mas não poderia ficar só nisso, não é mesmo? Rosa foi presa e supliciada no pelourinho da cidade de Mariana. Os castigos foram tão “leves”, que deixaram seu lado direito todo paralisado para o resto da vida, mas não parou por aí. Após ser levada ao Bispo e não passar em testes que incluíam resistir por cinco minutos à chama de uma vela foi considerada embusteira e passou a ser chamada de feiticeira. 

Ajudada pelo padre Francisco (estou resistindo em chamá-lo de Padre Xota), ela fugiu para o Rio de Janeiro onde confessou ter visões de Nossa Senhora da Conceição, no céu, recebendo revelações de uma fonte de água milagrosa. Pronto. Os franciscanos se impressionaram com os relatos, ela passou a frequentar o Convento de Santo Antônio (ali mesmo, no Largo da Carioca) e eles passaram a chamá-la de “a Flor do Rio de Janeiro”... mais a vida ensinaria que nem tudo são flores. Já veremos.
Os franciscanos pensaram numa coisa que hoje poderíamos chamar de ‘marketing religioso’, pois a igreja Católica estava procurando um modelo de santidade para a população negra e quem sabe Rosa não seria e santa que traria mais fiéis entre os pretos? Deram-lhe um nome pomposo – ‘Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cuz’ – que remetia a Santa Maria Egípcia, que também teria sido prostituta.

Rosa tratou de aproveitar seu momento de glória. Por visão celestial, Nossa Senhora “obrigou-a” a aprender a ler e escrever, o que ela fez rapidamente e pôs mãos à obra para por no papel as 250 páginas de suas visões. Passou a ser chamada 'Madre Rosa' e também por inspiração divina fundou o Recolhimento Nossa Senhora do Parto, que abrigava “moças desencaminhadas” e “mulheres da vida”. Ficou famosa, mas também exigente.


O mar de rosas (ou de Rosa) findaria quando ela começou a discutir com o clero carioca, pois achava que eles davam maus exemplos, falando demais e desrespeitosamente durante o culto. Pelo mesmo motivo retirou à força da igreja de Santo Antônio uma dama da sociedade, foi denunciada ao Bispo, presa e mandada para Lisboa junto com o padre ‘Xota-Diabos” para ser ouvida pelo Santo Ofício de Lisboa. Uma vez lá ela insistiu em reafirmar as visões. O padre declarou ter sido enganado de boa-fé pela falsidade da negra e recebeu como pena o degredo de cinco anos no sul do Algarve. E ela...bem, o processo se encerra inexplicavelmente m 4 de julho de 1765 e os historiadores levantam a hipótese de que morreu incógnita nas masmorras da Inquisição.


Madre Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz é ‘Flor do Rio de Janeiro’... e flor da cor!


Referências: 

MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil
GUIMARÃES, Rosely Santos. Corpo Negro: Entre a história e a ficção. O caso de Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Luísa Soares, a dor no braço, o diabo e o que nós temos com isso

De onde vem a intolerância religiosa que nos assola em pleno século 21, no Brasil? De onde vem tanto ódio? As respostas são muitas e no caso que será apresentado aqui agora aparecem várias pistas. Quem tiver olhos para ver, que veja.

Luísa em algum momento deve ter deixado escapar que era praticante de alguma religião de matriz africana e aí...

Em um belo dia do ano de Nosso Senhor de 1738, Josefa Maria, uma distinta senhora do Arraial de Antônio Pereira, futura cidade de Mariana, em Minas Gerais, sentiu uma forte dor no braço e não conseguiu abrir a porta da senzala pra dar os bons castigos que achava que eram do merecimento de Luísa da Silva Soares, que estava nesta época chegando aos 40 anos. Bursite? Tendinite? Fratura? Muitos diagnósticos poderiam ser sugeridos nos dias de hoje e mesmo há três séculos, no entanto, bruxaria foi a causa apontada como certa. A dor de sua senhora foi o início de tormentos sem fim para Luísa, que ficou conhecida como “A feiticeira do arraial de Antônio Pereira”.

Lavras auríferas que “secaram” e se tornaram improdutivas e toda espécie de acontecimentos considerados mágicos iam parar na conta da escrava, principalmente a dor de Josefa, que por nada melhorava. A doença da senhora foi a senha para que Luísa fosse barbaramente torturada por seus senhores e pelo pároco local. Até que em 1739 foi presa em 1742 denunciada à Santa Inquisição de Lisboa.

Tortura não devia ser um tema que espantasse ou sensibilizasse tanto assim os inquisidores, visto que a usaram fartamente durante toda a trevosa Idade Média, mas o caso daquela escrava brasileira impressionou os sábios doutores em assuntos de pactos com o “sete peles”, “o tinhoso”, “o manhoso” ou qual seja o nome que quisessem dar a ele, o diabo.

Em Portugal ela disse que tudo o que confessou à época da prisão o fez para se livrar dos martírios e que várias vezes pensou em se matar. Desculpem os que possuem estômago sensível, mas terei que relatar o que a contou nossa personagem principal.

Primeiro foi queimada no corpo inteiro com ferro em brasa e desfaleceu. Como Josefa não dava sinais de melhora voltaram à carga amarrando-a numa escada e ateando fogo em seus pés. Costuraram sua língua com uma agulha com quatro linhas. Apertaram-lhe a cabeça e daram-lhe pancadas, jogaram água fria e pingaram lacre aceso (aquela cera para selar cartas) sobre suas partes genitais. Ataram-na ao tronco. Ficou cega do olho esquerdo com um pau de ponta fina e a espancaram com uma espada desembainhada até quebrarem o osso do seu ombro direito.  Foi açoitada até ficar coberta de sangue e amarrada ao sol com bichos e moscas a lhe morder. Luísa foi socorrida por outros escravos que penalizados curaram suas feridas. Para finalizar, foi acorrentada e obrigada a desfilar pelo arraial (Alguém se lembra da caloura de direito pintada de negro, amarrada e obrigada a desfilar sendo puxada por um jovem branco em Minas Gerais este ano? Diante de uma caso como este de Luísa, alguém consegue medir a dimensão deste deboche?)
UFMG 2014


E assim a cativa confessou tudo o que quiseram. Confessou que preparou poções de raízes, pós, sapos, unhas de gente, cabelos... tudo, enfim, para causar dano aos seus senhores.

Seu depoimento impressionou tanto as autoridades portuguesas que chamaram testemunhas arroladas por ela, que confirmaram toda a história. Desconfiados das motivações e acusações dos senhores, decidiram libertá-la. O processo foi encerrado em 31 de maio de 1745, ou seja, sete anos de um suplício que por mais esforço que façamos não podemos calcular.

Para finalizar vamos pular os 276 anos do início do martírio de Luísa até este ano de Nosso Senhor de 2014. Em junho, o terreiro Cawé Cejá Gbé, em Duque de Caxias/RJ foi incendiado. Este foi o sexto atentado, em seis anos contra o espaço religioso e sua líder, mãe Conceição de Lissá. O que nós temos com isso? Sem mais.

Notícia completa aqui.


Fonte: Mulheres Negras do Brasil - Schuma Schumaer, Érico Vital Brasil - Editora Senac São Paulo

sábado, 27 de setembro de 2014

Esperança e a petição da esperança

Foto: João R. Ripper
Escravo não podia ler. Escravo não podia escrever. Mas em 1770 Esperança Garcia mandou uma carta para o governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. 

Os Jesuítas foram expulsos do país pelo Marquês de Pombal e suas fazendas passaram a ser administradas pelo governo. Esperança foi separada do marido e de uma filha, que ficaram na Fazenda Algodões, para ser cozinheira em outra propriedade, sob os cuidados do feitor Antônio Vieira de Couto.

Lourenço Botelho deve ter caído pra trás quando abriu a missiva e lá estava uma denúncia contra os maus tratos sofridos por ela e o filho, manuscrita de próprio punho. Abaixo a carta traduzida para o português mais atual.



"Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões , aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que me  mande para a fazenda de aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.
De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia"


O ilustríssimo governador certamente não deve ter se espantado pelos castigos, mas pela carta em si, visto que uma mulher branca alfabetizada já era algo bem raro na época. Pois se hoje muitos carecem de consciência política e hesitam em cobrar seus direitos às autoridades de forma mais direta e organizada, o que dizer de algo assim vindo de uma negra na segunda metade do século 18? Um atrevimento só, deve ter ele pensado.

Este raro documento foi encontrado pelo historiador Luiz Mott, em 1979, na Torre do Tombo, em Portugal, em documentos sobre a Capitania do Piauí. Segundo ele, uma escrita de garranchos e repleta de erros ortográficos, mas valiosíssimo por se tratar da primeira petição que se tem registro de uma escrava a uma autoridade no Brasil.

Provavelmente Esperança deve ter aprendido a ler e escrever na administração dos Jesuítas e é possível ver no texto também uma tática, que foi mencionar a falta de batismo e confissões. Ela deve ter imaginado que isso sensibilizaria muito, pois o catolicismo era a religião oficial. Se Esperança era como diz um  "colchão de pancadas", nós podemos imaginar com que sacrifício escreveu a carta, que artimanhas teve que engendrar para enviá-la, o que poderia ter acontecido se fosse descoberta e como deve ter depositado nisto o significado do seu nome: Esperança.

Infelizmente a história não nos diz afinal se foram tomadas providências e quais teriam sido seus resultados práticos para ela, seus filhos e companheiras, mas o seu ato teve o poder de nos mandar um recado. Uma mensagem como aquelas atiradas ao mar por náufragos, em garrafas. E ela nos diz: Mesmo sofrendo todos os martírios e correndo todos os riscos lutamos com as armas que tivemos. Agora é com vocês!

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Eduarda, José do Patrocínio e a "torturadora de Botafogo"


Clique aqui e leia a notícia de 11 de fevereiro de 1886.
Quando li este caso fiquei imaginando os olhos arregalados de espanto do José do Patrocínio, quando aquela moça de 15 anos, maltrapilha, cega e coberta de chagas entrou na redação do seu jornal. E acho que resolvi começar com ela a semear minhas ‘flores da cor’ justamente por ser um caso, como dizemos nos dias de hoje, midiático. Este é apenas um resumo do caso todo, que tem passagens no processo beirando o surrealismo.

No dia 11 de fevereiro de 1886, com todo o fervo do debate em torno da questão da escravidão, que afinal teria seu fim decretado dois anos depois, a escrava Eduarda, de apenas 15 anos e provavelmente desesperada por socorro tomou uma radical decisão: Procurar ajuda para denunciar às torturas a que ela e sua companheira de cativeiro, Joana, de 17 anos, eram submetidas dia sim e outro também. Denunciou sua senhora, Ana Francisca da Silva Castro, mulher de José Joaquim de Magalhães. Pessoas “de posses” que moravam na Praia de Botafogo.

A menina foi bater na Gazeta da Tarde e não por acaso. Ela pretendia ir à chefatura de polícia, mas foi aconselhada a ir ao jornal, pois “lá lhe dariam atenção” (Ah, a polícia carioca. Desde sempre acolhedora e bem conceituada). E de fato no jornal não só lhe deram atenção como auxiliaram no processo todo do caso.



José do Patrocínio
Nesta época o periódico era de propriedade do farmacêutico, ativista político, orador, escritor e, entre outras muitas coisas, jornalista, José do Patrocínio. Ele comprou o jornal em 1881 e dois anos depois, em 1883, articulou a Confederação Abolicionista unindo todos os clubes abolicionistas do país, cujo manifesto redigiu e assinou, juntamente com André Rebouças e Aristides Lobo.

Mas voltando à Eduarda, ela entrou na redação num estado tão lastimável que dele foi escrito:

“ A população d’esta capital assistiu hontem a mais uma scena triste e horrivel, que tem origem na nefanda instituição da escravidão, a que o Sr. chefe de policia tem prestado os mais relevantes serviços. Hontem pela manhã apresentou-se no escriptorio da Gazeta da Tarde uma miseravel creatura de nome Eduarda, escrava da Sra. D. Francisca Silva Castro,mulher de José Joaquim de Magalhães Castro e morador a à praia de Botafogo. A infeliz queixava-se de que tinha recebido de sua senhora os mais barbaros castigos. O rosto d’essa desgraçada creatura apresentava um aspecto horroroso: os olhos completamente fechados por causa de inflammação das palpebras; a testa coberta de chagas; a face entumecida e gottejando sangue; os pulsos cobertos de profundas feridas e largas escoriações, feitas com cordas ou qualquer outro instrumento de supplicio; no corpo e braços signaes evidentes de sevicias, alguns antigos e outros muito recentes. Mal cobria-a um vestido rasgado, que lhe deixava vêr o emmagrecido corpo, e a deixava descomposta; pois não vestia camisa. O miserando aspecto da desventurada creatura causava dó ao mais empedernido coração!” 



Joanna não podia andar e graças a todo o estardalhaço que fez a Gazeta foi recolhida da casa da senhora, mas não agüentando os ferimentos faleceu no dia 14 de fevereiro, três dias depois da denúncia de Eduarda.

Para encurtar, alegaram insanidade para dona Ana Francisca. Ela chegou a ser interditada e internada na Clínica Doutor Eiras e lá resolveu também maltratar a escrava que a acompanhava.

“... não gosto desta gente. Além disso, esta preta é também atrevida, senta-se nas cadeiras, bebe água nos copos como se fosse branca”.

Na verdade, fica claro que dona Francisca tinha uma loucura muito conveniente, que ia e vinha de acordo com a situação. Um dos médicos peritos, Dr. Teixeira de Souza, usou de ironia para definir os argumentos sobre a loucura da ré:

 “...sui generis, apparecendo e desapparecendo à vontade da defesa”.

No final de oito meses de embates entre advogados abolicionistas, matérias nos jornais, defesa escravista, peritos, médicos da defesa, veio a sentença:

“...de conformidade com a decisão do jury, foi a accusada absolvida por unanimidade de votos”.

O caso de Eduarda é emblemático e atual porque quando foi levada pelas mãos dos abolicionistas ao Sr. Dr. Monteiro de Azevedo, juiz do 11º distrito criminal, com tantas marcas evidentes de violência sem fim, e este a ouviu dando andamento ao caso, ela colocou o judiciário brasileiro na encruzilhada em que se vê até hoje, que é a de dar voz a quem sempre foi apontado como o agressor, o criminoso.

Alguns dos argumentos de Dona Francisca parecem ter saído de alguma notícia dos dias atuais, destas que colocam no caráter da vítima a justificativa para todo tipo de brutalidade: “As pretas eram perversas” e “Não bati. Mandei bater”.

Dois séculos depois temos que concordar com os peritos do caso que concluíram que “o estado normal de D. Francisca da Silva Castro é o de insanidade de espírito”... E ainda vemos como ela, muitos padecendo desta mesma moléstia!

Também fiquei imaginado a emoção do José do Patrocínio ao enxergar a tremenda coragem da garota tão frágil, gravemente ferida, para sair da casa em que era propriedade, nada além do que um utensílio doméstico, para alcançar um distrito policial ou uma redação de jornal e desnudar seu sofrimento. Esse ato é difícil para muitas mulheres hoje, em pleno ano de 2014!

Estejam onde estiverem, Eduarda e Joanna, saibam que vocês estão no jardim das ‘flores da cor!






Fontes: 

Dicionário da Escravidão Negra no Brasil - Clóvis Moura;
Revista de Criminologia e Ciências Penitenciárias- São Paulo - Ano 3 - Número 4 - Dezembro de 2013/ Janeiro - Fevereiro de 2014 - Cristiane Brandão Augusto.

 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Um jardim!

Sejamos francos e sem rodeios. No Brasil (não vou nem falar neste momento do que extrapola as fronteiras do nosso território nacional!) não é fácil ser mulher e a coisa complica muito se ela é negra. Para quem gosta (e precisa) do apoio das estatísticas está tudo comprovado em números, em gráficos, em mapas de norte a sul, dos institutos mais renomados aos trabalhos acadêmicos de graduação mais recentes. No entanto, para nós que vivemos literalmente na pele esta realidade desde que a primeira africana pisou o solo brasileiro, os pesquisadores poderiam ter economizado na busca o latim rebuscado e as contas complexas. Nós sempre soubemos.



Muita gente conseguiu escapar do manto da invisibilidade que as "histórias oficiais" sempre tentaram e todavia tentam nos jogar em cima para resistir bravamente com luta, arte, fé e atitude. Esse desconhecimento em tempos de tanta facilidade de acesso a informação é assustador. Temos uma pálida e distorcida ideia do nosso passado e desta forma, muita dificuldade para construir o nosso futuro.

Me incomoda deveras que minha filha e meu filho cresçam achando que a liberdade de que gozam hoje não foi conquistada por gente que arriscou o pescoço e sim concedida tenha sido lá com que interesse fosse. Me incomoda que não nos reconheçam como atores principais dos nossos avanços e limitem nossas crianças a história tão tímida (e vez por outra mentirosa) que é apresentada sobre elas mesmas nas escolas. Desta forma, tento aqui modestamente fazer a minha parte.

O Flor da Cor quer apenas ser mais um espaço a contar um pouquinho sobre essas moças, senhoras, idosas, adolescentes, algumas praticamente crianças, que ousaram e ousam sair do lugar subalterno a que uma parcela muito significativa da sociedade acreditava e ainda crê que devemos ocupar, como coadjuvantes das nossas próprias vidas. São mulheres do passado e do presente que formam um jardim, um imenso jardim de flores da cor!


Em tempo! Quem quiser mergulhar nas estatísticas, clique aqui e veja algumas bem ilustrativas do boletim de fevereiro do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Estatísticas e Sociais das Relações Raciais do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LAESER), coordenada pelo economista Marcelo Paixão. As mulheres ganham até 60% a menos que os homens nas regiões metropolitanas do país, mas a mulheres negras seguem na base da pirâmide social ganhando menos ainda em qualquer função.