domingo, 8 de março de 2015

Dia oito de março não é 25 de dezembro


“Feliz dia da mulher!”
O dia não tinha chegado ao seu primeiro quarto e eu já havia recebido felicitações das mais diversas fontes. Agradeci, obviamente, pois a educação dada com tanto sacrifício por mamãe e papai não me deixam fazer nada diferente, mas apenas para esclarecer: A data não é uma comemoração. Ela é um protesto. É um grito. Algo como “Oi, mundo! Ainda estamos aqui e queremos muito mais!”
A publicidade, esse instrumento que para vender (produtos ou ideologias), se apropria e distorce tudo, tratou logo de “resignificar” a data. Fez dela algo como um dia das mães, dos pais, dos namorados, natal, etc. Não é. Não existe um consenso histórico sobre o seu surgimento. Alguns dizem que remete a um incêndio numa fábrica de tecidos em Nova Iorque e outros fazem menção a manifestações nesta mesma fábrica. Não importa. O fato é que foi estabelecida em 1909 como protesto a péssimas condições de trabalho.

E o que vemos hoje, 116 anos depois da sua primeira “comemoração”? Péssimas condições de trabalho. Tudo bem, avanços aconteceram, mas a passos de cágado se sairmos da caixinha pensando no planeta como um todo. E se a coisa é feia para a mulher, piora consideravelmente se essa mulher for negra.
No Brasil, uma análise do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Estatísticas e Sociais das Relações Raciais do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LAESER) manda o papo reto em números. Sob qualquer ponto de vista a diferença é escandalosa.

Em dezembro de 2013, analisando os dados da população economicamente ativa das maiores regiões metropolitanas do país – Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre – a média de ganhos de um homem branco era R$2.787,44. A mulher branca vinha em seguida (R$2.031,77), depois já descendo a ladeira significativamente os homens negros ou pardos (R$1.561,06) e por último elas, as mulheres negras ou pardas (R$1.200,84).A taxa de desemprego no mesmo mês era de 2.9% para os homens brancos, 4,2% para mulheres brancas e homens negros e pardos, e 6,7% para mulheres negras e pardas! Veja a pesquisa completa aqui.

Quem é minimamente observador notou que na última campanha eleitoral todas as âncoras dos programas dos partidos na TV eram mulheres negras. E porque isso se deu? Simples, somos a base da pirâmide social e as pessoas que no final das contas podem decidir uma eleição. Em contrapartida quais são as políticas públicas voltadas para este segmento nas três esferas de governo (Municípios, Estados e Federação)? Deixo aí um trabalhinho de casa. 


Agora é minha vez de dar os parabéns àquelas que além das agruras no mercado de trabalho, ainda tem que aturar o preconceito contra o seu cabelo, o seu modo de vestir, o seu corpo todo enfim! Para as que ainda tem que assistir  todo tipo de estereótipo mediático e não podem nem reclamar sem serem tachadas de “paranóicas”. As que sofrem violência doméstica (física e/ou psicológica), criam os filhos em grande medida sós e mesmo com brigas, choro, momentos de desespero... Vencem!
Queremos, precisamos, merecemos e exigimos mais, muito mais!


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A fotógrafa Alice no país das maravilhas... Africanas!

Benim 2013
O que o Benim, a Alemanha e o Brasil tem em comum? A fotógrafa Alice Kohler. Ela é catarinense residente no Rio de Janeiro desde os dois anos de idade, descendente de alemães e é apaixonada pela África. 

O Benin, na parte ocidental do continente, abriu em 2013 as portas do mundo africano para Alice, que lá esteve para realizar um trabalho social. E a África lhe tomou o coração, pois voltou em 2014, para a Namíbia, na porção austral (faz fronteira com Angola, África do Sul, entre outros) onde conviveu com o belo povo Himba; e se prepara para retornar este ano, desta vez para o Kênia. 

Como não é segredo para ninguém, África, Brasil e Alemanha também tem em comum um passado colonial de muita violência e exploração. Ironicamente, em fins do século 19 (1884) a Namíbia se tornou um protetorado alemão que, como em todo processo colonizador, foi alvo de atrocidades por parte dos colonizadores.

Benin e Brasil tem absolutamente tudo a ver, pois de lá saíram milhares de escravos para mover com seus braços a economia do império brasileiro. Embarcando em Porto Novo, sua capital, ou da fortaleza de Uidá, chegaram amontoados nos porões e desembarcaram em sua maioria na Bahia. O antigo reino do Daomé é uma ex-colônia francesa, mas que mantém vivo o fon e tantos outros idiomas e etnias que lá estão e aqui também, misturados no nosso caldeirão.



Benim 2013
Benim 2013
No Benin, Alice viu de perto a dura face da escravidão, cuja prática ainda persiste, apesar dos esforços para o combate. Ela surge como um legado macabro do sistema que por séculos pôs as engrenagens da sociedade para funcionar baseado nesta perversa lógica. Mas também travou contato com uma civilização que resiste e mantém sua cultura.Disparou seu obturador e sacou milhares de fotografias de grande plasticidade.



Do Daomé vieram os voduns, que erroneamente foram no "mundo novo" identificados com a "magia negra", "feitiçaria" e daí em diante. O vodum é a forma portuguesa e voodoo a forma inglesa de escrever vôdoun, que são as divindades, ancestrais míticos ou históricos  do povo fon. Uma religião sofisticada, que na diáspora negra ganhou novos contornos.

Benim 2013


Jovem 'Himba', da Namíbia.
















As imagens registradas por Alice são mágicas porque levantam, mesmo que por alguns breves instantes, o véu do nosso passado. 


Mulheres do povo 'Himba', da Namíbia.
Botswana 2014

Benim, Namíbia, Botswana, Kênia... flores da cor!



sábado, 24 de janeiro de 2015

Luisa Mahim: “Sou negra mina, sou nagô, sou jêje, sou pagã e libertária”



Representação de Luisa Mahin / Luiz Gama


Uma quituteira nas ruas de Salvador auxilia na articulação de uma rebelião. Ela ocorre, acontece delação, 70 pessoas são mortas, 281 presas e ela - a revolta - bem como a quituteira entram para história do Brasil como símbolos do não conformismo com a escravidão.

No domingo dia 25 de janeiro de 2015 completam-se 180 anos da Revolta dos Malês,  uma das maiores e mais impressionantes rebeliões escravas ocorridas no país e este deveria ser tema de uma enxurrada de programas e debates, assim como a pessoa a quem atribuem a frase que abre este texto: Luísa Mahin

Luísa é um mito. Para grande parcela ela personifica o emblema da luta, da não entrega, da coragem, da ousadia. Um nome que deveria ter tudo o que certamente não terá este ano, que são matérias em jornais, especiais na TV, a divulgação em larga escala do que representou. E não preciso nem dizer o porquê disso não ser notícia...

Apenas recapitulando rapidamente para os que ainda não foram apresentados a esta personagem e à famosa revolta (Se este é o seu caso não se acanhe! Leia em obras de bons historiadores eescritores. Tem uma listinha bacana no final. É uma passagem sensacional e essencial para entender mais o nosso Brasil. Fica a dica).

A palavra ‘malê’ vem do iorubá ‘imalê’ e signfica ‘muçulmano’. Esta era uma expressão genérica para designar os provenientes do povo mahi (do Benin) e outros negros islamizados como hauças, tapas, bornus, etc. Africanos das etnias jêje e nagô que foram os articuladores e protagonistas da revolta que em 1835 apavorou a província e em grande medida, o país. O objetivo era ousado: Tomar o poder, libertar os africanos, confiscar os bens dos brancos e mulatos e estabelecer uma monarquia islâmica.

Os planos foram cuidadosamente elaborados, dizem, pelos que tinham experiência anterior de combate na África. Todas as mensagens eram escritas em árabe e - segundo consta - corriam entre os revoltosos escondidas no tabuleiro de Luisa. Mais de 600 pessoas participaram da revolta que de acordo com João José dos Reis – autor de Rebelião Escrava no Brasil – levando em consideração a população da época corresponderia hoje a 24 mil pessoas.

Os planos de ataque eram assinados por um escravo de nome Mala Abubaker. Eles sairiam do atual Porto da Barra para o centro de Salvador, tomariam o poder, rumariam para o Recôncavo onde tinham infiltrados nos engenhos para libertar os escravos por lá. Após a repressão do levante que durou dois dias, as penas foram da execução de quatro identificados como os principais líderes até os castigos corporais, trabalho forçado e exílio. De Luisa diz-se que foi deportada para a África, que fugiu para o Rio de Janeiro ou ainda para o Maranhão.

Muito se fala sobre aquela que teria sido a mãe de Luiz Gama, o advogado dos escravos, que é reverenciada e homenageada pela comunidade negra no Brasil, mas como  ainda não apareceram documentos que atestem inequivocamente a existência de Luisa, realidade e imaginação se mesclam numa figura que já extrapolou o personagem histórico em si. Tudo é dúvida e tudo é certeza! Luiz Gama revelou numa carta autobiográfica enviada em 1880 ao amigo Lúcio de Mendonça algumas pistas sobre sua mãe.

"Sou filho natural de negra africana, livre, da nação nagô, de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto sem lustro, os dentes eram alvíssimos, como a neve. Altiva, generosa, sofrida e vingativa. Era quitandeira e laboriosa."

A partir daí surgiram poemas, histórias, estudos, elucubrações, hipóteses.  E Luiz também dedicou a ela os versos de ‘Minha Mãe’, publicados no livro ‘Primeiras Trovas Burlescas de Getulino’ e que começam com ...

“Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!”

Amuleto malê. Apreendido entre os revoltosos de 1835.
O legado deixado pelos povos islamizados é vasto na nossa cultura. Vai de temperos e comidas, a vestimentas e práticas religiosas, mas é curioso observar como o brasileiro mediano se vê totalmente apartado do universo muçulmano.

Não sei bem no que daria caso os malês tivessem tido sucesso. Fazendo um exercício de imaginação certamente não seria nada do que particularmente sonho para a minha pátria... Mas tão pouco isso que temos é o que desejo para mim, meus filhos e os que virão depois, logo, o recado dado por eles segue mais atual do que nunca: Definir o que se quer, planejar e lutar por isso!

Dicas legais de leitura sobre Luisa Mahin e a Revolta dos Malês:

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835.
Companhia das Letras, 2003.

GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça: São Paulo, 25 de julho de 1880 In:
Luiz Gama o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luíza Mahin. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

ARACI, Nilza, PEREIRA, Maria Rosa e RUFINO, Alzira. A mulher negra tem história.
Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista/Prefeitura Municipal de Santos, s.d.

ALVES, Mirian. Mahin amanhã. Cadernos Negros, nº 9 (1986): p.46.



segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Um quilombo chamado Carolina Maria de Jesus!

28 de maio … A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.”(Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus).

Enganam-se os que pensam que quilombo é apenas um local para onde os negros (ou qualquer um com ânsia de liberdade) fugiam. Penso que um quilombo é, sobretudo, um local de resistência fincado no coração da hostilidade. Uma ilha cercada de rancores, raivas e ódios por todos os lados, mas que não se entrega sem luta. Sendo assim, um quilombo pode ser um lugar e também uma pessoa.

Zumbi dos Palmares era ele próprio um quilombo, assim como Dandara, Aqualtune e todos os que ali resistiram à opressão. Desta mesma forma, Carolina Maria de Jesus, a escritora catadora de lixo que registrou seu dia-a-dia na favela paulistana do Canindé em 35 cadernos, era sozinha um quilombo inteiro.

Os cadernos de Carolina viraram o livro “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada”. Resistindo em meio ao ódio e o desprezo da São Paulo da metade do século passado (e que se mostra ainda feroz nesta segunda década do século 21), Carolina expôs todas as feridas. As dela e as da sociedade doente. Ela foi descoberta quase que por acaso, quando o jornalista Audálio Dantas, do Diário de São Paulo, fazia matéria sobre um parque na capital. Ali ele soube da catadora de lixo que era escritora e, curioso, foi conferir sua produção. Impressionado, correu para o jornal e a história daquela mulher correu a cidade. 

Quarto de Despejo foi publicado em agosto de 1960. A tiragem inicial de 10 mil exemplares esgotou em três semanas. O livro foi traduzido em 13 idiomas e se tornou um best-seller na Europa e na América do Norte. A menina que cursou apenas até o segundo ano do que hoje é o ensino fundamental ficou famosa e conseguiu mudar para uma casa de tijolos no subúrbio graças ao livro, no entanto, ganhou o ódio de seus vizinhos, que no dia da mudança atiraram penicos cheios nela e nos filhos, a chamavam de prostituta negra, a acusavam de ganhar dinheiro falando da favela, mas sem repartir o dinheiro. Uma pessoa que não se encaixava. Ignorada pelos de cima, hostilizada pelos de baixo, Carolina apenas resisitia "aquilombada" em si mesma... escrevendo.



“…Eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o Jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.”  (Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus).

O sucesso é efêmero, dizem. E é verdade. Apesar da fama, Carolina Maria de Jesus, nascida em 14 de março de 1914, morreu esquecida e pobre, de insuficiência respiratória em 13 de fevereiro de 1977. Em 2014 comemoramos os 100 anos desta mulher guerreira, que nos lançou um doído grito de socorro em suas obras. Apesar dos avanços ele ainda ecoa, ele ainda dói em muitas como ela, ele ainda lateja em todos os que se importam.

“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”

A fome do corpo nós estamos aos poucos vencendo. Sair do mapa mundial da fome no mundo não é pouca coisa. No entanto, a fome por verdadeira inclusão, por verdadeira justiça, por verdadeira aceitação do outro, esta ainda está bem longe de ser aplacada. Resgatar Carolina Maria de Jesus é lembrar do que não podemos nunca, jamais e em tempo algum esquecer.

Livros publicados
•    Quarto de despejo (1960)
•    Pedaços de fome (1963)
•    Provérbios (1963)

Publicação póstuma
•    Diário de Bitita (1982)
•    Onde Estaes Felicidade (2014)


sábado, 1 de novembro de 2014

A Rainha Viúva

Se eu fosse escrever um roteiro de cinema para esta história, a primeira cena deste filme  poderia mostrar um negro fujão ainda preso em suas algemas chegando exausto ao quilombo e, auxiliado pelos hábeis ferreiros que habitavam o lugar, se libertando das correntes. Na sequência estas mesmas correntes estariam na forja e seriam transformadas em armas e instrumentos de trabalho.  Foi deste jeito, usando os próprios objetos que os torturavam para produzir o que os defendia e alimentava, que Tereza de Benguela reinou por duas décadas, de 1750 a 1770, no quilombo do Quariterê, em Mato Grosso, na região do Vale Guaporé, que ficava próximo à fronteira de Mato Grosso com a Bolívia.

Tereza é famosa. Provavelmente africana nascida na angolana Benguela, ela é tema de teses, verbete de livros e já desfilou na avenida Marquês de Sapucaí levada pelo talento do genial Joãozinho Trinta, em 1994, na Viradouro. Pelo que parece, a forja era a própria mão de Teresa, mulher do chefe quilombola José Piolho que com a morte deste passou a comandar todo o quilombo. Por isso ganhou a alcunha de ‘rainha viúva’

Tereza era uma versão de saias do alagoano Zumbi dos Palmares. Ela não dava mole. Uma vez no Quariterê para sempre nele, pois as deserções eram punidas com a vida. Um desertor poderia por em risco a sobrevivência do quilombo, revelando seu posicionamento às autoridades.

Ela era a chefe política, militar e administrativa do agrupamento que contava com parlamento, conselho da rainha e um esquema de segurança que incluía troca de armamentos com os brancos. Segundo contam, a comunidade se auto-sustentava e ainda vendia tecidos e excedentes da produção agrícola fora do quilombo. 

Vinte anos resistindo ao poder colonial não era para qualquer um, muito menos para uma mulher. O Quariterê causava enormes prejuízos aos fazendeiros locais, pois a mão de obra estava afluindo com força para suas terras. Por motivos óbvios a cabeça de Tereza era muito bem vinda pelo governo local, que junto com
os donos de escravos patrocinou a bandeira chefiada por João Leme de Prado. Depois de percorrer por um mês Vila Bela, os 30 homens comandados por João Leme atacaram a comunidade de surpresa.

Muitos morreram, outros fugiram, mulheres foram violadas pelos bandeirantes e vários foram levados à cidade de Vila Bela para reconhecimento público. Depois de serem reconhecidos por seus donos foram surrados e marcados no rosto com ferro em brasa com a letra “F” de fugidos. A 'rainha viúva' foi capturada, mas preferindo a morte às humilhações que sofreria se matou ingerindo ervas venenosas.

O Quariterê devia ser algo muito especial, pois ali conviviam negros africanos, brasileiros, índios e mestiços de índios com negros numa rica fusão de culturas. Todos fugindo da exploração, dos maus tratos, do aprisionamento. Uma integração latino-americana necessária e buscada com avidez, mas até hoje rechaçada por muitos no Brasil. O samba da Viradouro destacou essa mistura.



“No seio de Mato Grosso, a festança começava/
Com o parlamento, a rainha negra governava/
Índios, caboclos e mestiços, numa civilização/
O sangue latino vem na miscigenação”

Este ano o foi sancionada a lei que elegeu o dia 25 de julho como o “Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra”. Um trecho da justificativa diz:

“No dia 25 de julho é celebrado anualmente o Dia Internacional de Luta da Mulher Negra da América Latina e do Caribe, entretanto o Brasil não tem uma data oficial de celebração da mulher negra, sendo importante termos em nosso calendário oficial de datas comemorativas um dia para homenagear a existência da mulher negra.

No entanto, é preciso criar um símbolo para a mulher negra, tal como existe o mito ZUMBI dos Palmares, as mulheres carecem de heroínas negras que reforcem o orgulho de sua raça e de sua história, de mulheres que sirvam de espelho para as batalhas cotidianas de cada mulher negra. Desta forma apresento, como forma de resgatar a memória de uma heroína negra negligenciada pela história, a homenagem à Tereza de Benguela”

Salve Tereza de Benguela!


Clique aqui e escute o samba da Viradouro de 1994
Clique aqui e leia a íntegra do Projeto de Lei do Senado Federal.
Fontes: Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Clóvis Moura.

domingo, 19 de outubro de 2014

O bendito fruto do nosso ventre...livre!

Prisão de ventre para mim durante muito tempo foi apenas um problema de saúde na contramão da natureza, pois um corpo saudável precisa expelir o que não lhe serve. No entanto, para o Brasil, ao longo de 371 anos, um “ventre preso” era muito mais que isso.  Aqui valia a norma do partus ventrem sequitur. Traduzindo: O filho do ventre escravo, escravo seria. A mulher era levada a enxergar o ser que lhe preenchia o ventre como algo que nunca seria seu. A Flor da Cor de hoje na verdade é ele, o nosso útero.

Quando estudamos isso nos bancos escolares nem de longe nos contam o alcance desse tema. Um “ventre preso” tirava o direito da mãe sobre o filho. Dentro dele havia um feto já condenado aos caprichos, crueldades e vontades do seu senhor. Podia estar negociado e sentenciado a viver muito longe dos seus sem ao menos ter chorado pela primeira vez. Ele, o feto, já poderia fazer parte dos bens de algum defunto para ser partilhado entre seus descendentes. Ela, a cria, era parte de um rebanho, de cabeças de gado humano que só tinha um direito: Obedecer bovinamente, resignadamente.

O que fazer para não expor a futura prole à tão cruel sina? "Não vamos deixar que nasçam!" - Muitas pensavam - "
Vamos aborta-los!" - muitas faziam.  E a mortandade beirava os 80%. Qualquer semelhança com tempos atuais não é mera coincidência, pois não estamos muito distantes dos bárbaros tempos da falta de assistência à mulher no Brasil. 

E então, depois de muita pressão de abolicionistas e da comunidade internacional, no dia 28 de setembro de 1871 promulgam a Lei Rio Branco, que foi popularizada como Lei do Ventre Livre. Um texto com 10 artigos que logo de cara disse a que veio. Está lá no primeiro parágrafo do primeiro artigo, que as crianças ficariam em poder e sob responsabilidade dos senhores da mãe até os oito anos completos, quando os donos teriam a opção de receber uma indenização do Estado ou de utilizar os serviços do menor até os 21 anos!

Se você não tem oito anos seguirá meu raciocínio. Assim que se equilibrava 
sobre as duas pernas, o moleque ficava com o dono trabalhando feito um burrico de carga. Quando completava oito, mas já estropiado pela exploração do trabalho infantil, o senhor obviamente dispensava a tal indenização (600 mil réis), que era muito menos do que o escravo poderia valer e produzir como adolescente e jovem. E quando o nosso “ingênuo” (nome dado aos nascidos do ventre livre) completava 22 anos, que condições tinha ele para gozar de sua liberdade?

Mesmo com condições tão favoráveis aos senhores, as formas de burlar essa lei eram tantas e tão criativas, que não cabem aqui neste singelo texto. Basta saber que o Diário Oficial da Bahia (vejam bem, um órgão oficial!) publicou em 4 de junho de 1887, um anúncio de leilão  numa propriedade escrava nos seguintes termos:

“Alberto, 10 anos, por um conto de réis; Vicente, 13 anos, por seiscentos mil-réis; Félix, 14 anos, por oitocentos mil-réis...” E por aí vai. Dezesseis anos depois da promulgação da lei as crianças ainda eram leiloadas acintosamente  e impunemente em veículo oficial da província.

Se você de fato não tem oito anos vai seguir este meu outro raciocínio: A tão decantada mistura entre brancos e negros no Brasil nasceu da violência sexual. Obviamente que rolou sexo consentido, mas a maioria, a esmagadora maioria das escravas era sistematicamente estuprada em senzalas por senhores, seus filhos e toda sorte de homens brancos que tivessem poder sobre elas.

Experimentasse a “negrinha” não ceder aos desejos do “inhô” e não preciso descrever o que ocorria. Dito isto, o feto escravo não raro era fruto do seu algoz.

Quanto às mães, cabia a elas trabalhar para que os seus não sofressem a mesma prisão que elas. E os casos são inúmeros de mulheres que abriram mão da própria liberdade para nos raros momentos de folga juntar recursos que de verdade libertassem o fruto de seus ventres.

Perguntas: Não é isso o que continuam fazendo tantas mães que sozinhas sustentam seus lares pelas periferias do Brasil a fora? 

Quando vozes se levantam para defender com tanta virulência a redução da maioridade penal baseados nos 1,9% dos crimes que são cometidos por menores no Brasil, não estão previamente condenando crianças pobres a viver na mira das forças de repressão mais cruéis? E, em virtude do nosso processo histórico, não seriam essas crianças em sua esmagadora maioria negras? Não estão levando suas mães a questionar a utilidade e validade de suas vidas antes mesmo de virem ao mundo? E na verdade, não seriam esses os reais motivos para defenderem tais coisas?

Quando gritam para estimular o Estado a não tratar o aborto como questão de saúde pública e para não reconhecer direitos básicos conquistados por setores da população que até seus úteros tiveram negociados ao longo de meio milênio de história, a pergunta que fica é: O ventre é realmente livre no Brasil de 2014?

O útero negro é um herói sobrevivente do silencioso, secular e cruel racismo brasileiro.

sábado, 11 de outubro de 2014

Rosa Egipcíaca: A flor do Rio de Janeiro

Esta história é muito louca (alguns diriam no sentido literal!) e tão profunda em seus muitos significados que eu não teria jamais a pretensão de esgotá-la, como, aliás, não tenho com nenhuma outra. Aqui está apenas o meu olhar. E esse olho hoje bateu na negra que em 1725 desembarcou de um tumbeiro ainda criança no porto do Rio de Janeiro. Além de escrava, ela foi prostituta, beata, embusteira (o famoso 171 na gíria de hoje), aprendiz de santa, escritora e, finalmente, mais uma simples mulher negra que sofreu descrédito e anos de castigos físicos violentíssimos.

Rosa é autora de ‘Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas’, o livro mais antigo escrito por uma mulher negra no Brasil. E não fosse por mais nada, por este fato lhe rendo minhas homenagens.

Acontece que Rosa saiu da Costa da Mina com mais ou menos seis anos e ficou no Rio até seus 14 anos, quando foi levada para Minas Gerais pelas mãos do frei José da Santa Rita Durão, aquele mesmo poeta que escreveu ‘Caramuru’ e é considerado um dos precursores do indianismo no Brasil. Em Minas, Rosa se tornou prostituta e pelo visto obteve sucesso na carreira, pois aos 30 anos resolveu vender todas as jóias e roupas conquistadas e doá-las aos pobres. Fez isso depois que foi acometida por uma estranha doença que fazia seu rosto inchar, sentir dores e tumores no estômago. Tudo isso junto com uma coisa que, mais uma vez, faz minha imaginação voar. 

Pensem numa mulher negra, no século 18, prostituta, que começa a ter visões místicas com Nossa Senhora da Conceição? A força das visões tirou Rosa da “profissão mais antiga do mundo”, fazendo dela uma ex-prostituta (sim, isto existe), para torná-la beata, frequentadora assídua dos sermões, missas e ofícios, onde conheceu o padre Francisco Gonçalves Lopes, conhecido pela singela alcunha de ‘Xota-Diabos’. Ele era um exorcista e Rosa se dizia possuída por sete demônios. 
Nossa Senhora da Conceição,
pelo pintor espanhol
Estéban Murillo.


Na primeira seção de exorcismo, segundo o que está no livro de Luiz Mott (ver referências no final) ela caiu desmaiada “partindo a cabeça na pedra debaixo do altar de São Benedito". Mas não poderia ficar só nisso, não é mesmo? Rosa foi presa e supliciada no pelourinho da cidade de Mariana. Os castigos foram tão “leves”, que deixaram seu lado direito todo paralisado para o resto da vida, mas não parou por aí. Após ser levada ao Bispo e não passar em testes que incluíam resistir por cinco minutos à chama de uma vela foi considerada embusteira e passou a ser chamada de feiticeira. 

Ajudada pelo padre Francisco (estou resistindo em chamá-lo de Padre Xota), ela fugiu para o Rio de Janeiro onde confessou ter visões de Nossa Senhora da Conceição, no céu, recebendo revelações de uma fonte de água milagrosa. Pronto. Os franciscanos se impressionaram com os relatos, ela passou a frequentar o Convento de Santo Antônio (ali mesmo, no Largo da Carioca) e eles passaram a chamá-la de “a Flor do Rio de Janeiro”... mais a vida ensinaria que nem tudo são flores. Já veremos.
Os franciscanos pensaram numa coisa que hoje poderíamos chamar de ‘marketing religioso’, pois a igreja Católica estava procurando um modelo de santidade para a população negra e quem sabe Rosa não seria e santa que traria mais fiéis entre os pretos? Deram-lhe um nome pomposo – ‘Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cuz’ – que remetia a Santa Maria Egípcia, que também teria sido prostituta.

Rosa tratou de aproveitar seu momento de glória. Por visão celestial, Nossa Senhora “obrigou-a” a aprender a ler e escrever, o que ela fez rapidamente e pôs mãos à obra para por no papel as 250 páginas de suas visões. Passou a ser chamada 'Madre Rosa' e também por inspiração divina fundou o Recolhimento Nossa Senhora do Parto, que abrigava “moças desencaminhadas” e “mulheres da vida”. Ficou famosa, mas também exigente.


O mar de rosas (ou de Rosa) findaria quando ela começou a discutir com o clero carioca, pois achava que eles davam maus exemplos, falando demais e desrespeitosamente durante o culto. Pelo mesmo motivo retirou à força da igreja de Santo Antônio uma dama da sociedade, foi denunciada ao Bispo, presa e mandada para Lisboa junto com o padre ‘Xota-Diabos” para ser ouvida pelo Santo Ofício de Lisboa. Uma vez lá ela insistiu em reafirmar as visões. O padre declarou ter sido enganado de boa-fé pela falsidade da negra e recebeu como pena o degredo de cinco anos no sul do Algarve. E ela...bem, o processo se encerra inexplicavelmente m 4 de julho de 1765 e os historiadores levantam a hipótese de que morreu incógnita nas masmorras da Inquisição.


Madre Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz é ‘Flor do Rio de Janeiro’... e flor da cor!


Referências: 

MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil
GUIMARÃES, Rosely Santos. Corpo Negro: Entre a história e a ficção. O caso de Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz.