sábado, 11 de maio de 2019

Um lampejo intimista de um encontro histórico

Juízas Adriana Cruz, Alcioni Escobar e Karen Pinheiro

“Meia lágrima
Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.
Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.
Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.” (1)



   A igual representatividade dentro do sistema de justiça e demais espaços é essencial para sua maior legitimidade e pleno desenvolvimento de seus integrantes. A sociedade é plural e suas instituições devem refletir isso, em especial onde é exercido o poder. A diversidade em postos de decisão permite maior permeabilidade do Estado para as mudanças exigidas pelos vários segmentos que compõem a sociedade, considerando assim percepções sobre o mundo advindas de indivíduos com diferentes vivências, com diferentes perspectivas, partindo de distintos lugares sociais.

    A sistemática e constante subrepresentação de determinados grupos nos órgãos do Estado é indicativa de um déficit democrático: não há igualdade efetiva de acesso a todos. No Brasil os números tornaram-se amplamente conhecidos a partir do Censo do Judiciário 2014 (dados de 2013) realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, ratificados no Censo de 2018: o Poder Judiciário brasileiro é majoritariamente branco (80,3%) . A despeito de mais da metade da população brasileira ser composta de negros e pardos , esse grupo representa apenas 18,1% da magistratura brasileira, que, ainda, conta com apenas 11 magistrados indígenas.

       Há desproporção também na composição por gênero. Considerados todos os ramos do Judiciário, 62% dos juízes são homens. As mulheres negras compõem percentual de 1% a 2% por ramo da Justiça brasileira.

      Diante desse quadro, realizou-se, entre os dias 10 e 12 de maio de 2017, o I Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros, com segunda edição em novembro de 2018 e uma terceira com organização em curso para este ano. Uma experiência quase indescritível para aqueles e aquelas que pela primeira vez, alguns já com longos anos de magistratura, tiveram a oportunidade de discutir sobre sua condição de cidadão e cidadã negra dentro do Judiciário e compartilhar essa experiência com os colegas não negros e negras.

     Aos desavisados a vida, às vezes, presenteia com boas surpresas. Em maio de 2017, recebemos esse presente. A participação no I ENAJUN foi inicialmente motivada por um misto de curiosidade, de afinidade, mas não antevíamos a força que um encontro de biografias pautadas pela mesma conformação histórica pode impulsionar.

    Sim, a clareza de uma identidade impulsiona a reflexão, impulsiona o movimento da vida em direções mais solidárias, traz a percepção do que se colocou em segundo plano, como referências culturais, para poder existir nesse lugar social, Poder Judiciário, do qual também fazemos parte.

   Hoje também é nosso motor, como diz Angela Davis, “(…) a evidência da condição de incompletude das lutas planetárias por igualdade, justiça e liberdade.”

      Nossa aproximação deu-se para além do contato profissional e cada uma, em seu espaço e tempo, mergulhou mais profundamente no compromisso de fomentar o diálogo sobre a discriminação racial e a reflexão sobre práticas que possam combater essa chaga que a todos adoece. Uma afinidade reforçada pelo sentimento comum de vivenciar o paradoxo de ocupar um espaço de poder e ao mesmo tempo transitar no mundo com opressões de quem está na base da pirâmide. Ainda que mitigadas e sem parâmetro de comparação com aquelas sofridas por outras mulheres negras que não dispõem das mesmas ferramentas que nós para estar no mundo, pretendemos, com nossos movimentos, modificar estruturas.

      Partimos de diferentes pontos do país para uma experiência nunca antes vivida. Nunca mesmo, por ninguém mais. Ansiosas, pretendíamos olhar o espelho, saber quem éramos, entender nossas histórias, (re) descobrir nossa identidade.

   A partir de então outros saberes foram criados, reciclados, ressignificados, separados, multiplicados. Assim, em movimento, como placas tectônicas, vamos as três, respeitando nossos limites e buscando potencializar nossas possibilidades. Seguimos certas de que aprendemos com nossos mais velhos e mais velhas. Parafraseando a grande Conceição Evaristo, nossa “escrevivência” no Judiciário e na vida não será para ninar o sono dos injustos. 

Adriana Alves Cruz, Juíza Federal no Rio de Janeiro,
Alcioni Escobar, Juíza Federal no Pará,
Karen Luise Souza Pinheiro, Juíza de Direito no Rio Grande do Sul,

Referências:


 (1) EVARISTO, Conceição.  Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. Fonte. Disponível em: < https://escolaeducacao.com.br/conceicao-evaristo/#Poemas_Conceicao_Evaristo>


 Os números relativos à composição nacional da magistratura foram extraídos do censo do Judiciário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018. Disponível em: 

<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/09/49b47a6cf9185359256c22766d5076eb.pdf>
 O conceito de raça que permeia a lógica deste artigo é utilizado como construção social legitimadora de distinções entre indivíduos a partir de marcas fenotípicas e não sob a perspectiva biológica, reconhecidamente inexistente entre seres humanos.

 De acordo com o último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE, a população brasileira, em 2010, contava com 191 milhões de habitantes, dos quais 50, 7% se declararam como pretos e pardos (97 milhões); 2 milhões como amarelos  (1,1%) e 817 mil indígenas (0,4%).  Censo Demográfico 2010: características da população e dos domicílios. Disponível em http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdfAcesso em 16. maio .2017.


 DAVIS, Angela. A liberdade é uma Luta Constante, São Paulo: Boitempo, 2018






sexta-feira, 8 de março de 2019

As 12 mulheres do dia oito



Eliana Alves Cruz



Somos as vozes das 12 mulheres que não verão o sol do dia 9 de março.
Somos as vozes daquelas que não receberam flores ou perfumes;
O grito mudo das que viram a lâmina como último brilho
...ou a bala como derradeira carícia
Somos a lágrima do olho que, roxo, não conseguiu chorar

Se nosso corpo os provoca até o ponto da posse,
Não é culpa nossa a vossa doença
Baseada na crença de que somos a raiz dos pecados do mundo

Somos os 12 ventres abertos por mãos que esmagam sem tocar
Os 12 hematomas na boca do estômago  
O septo desviado
O crânio fraturado

Somos as fêmeas que pariram as putas do teu xingamento
E teu alimento em leite de peito e mel das entranhas
Doze mulheres num beijo de morte
Doze vaginas à própria sorte
Doze seres expostos aos julgamentos
Linchamentos, excrementos

Somos 12 mulheres e, sabemos, vocês não conseguem ver
Temos aqui ao menos oito rostos pretos,
Pois a lágrima clara não se comove fácil pela pele escura

Não estamos sós
A nós, não se enganem, amanhã se juntarão mais doze
Talvez uma moça que recebeu flores
Ou uma mãe que guardou no armário algum presente
Quem sabe a noiva de aliança no anular
Ou a ambulante chegando a casa depois de tanto lutar
Talvez a rica senhora que se acha protegida
Ou a indigente igualmente preterida
E ainda tem aquela, a executiva
Nenhuma de nós está excluída da possibilidade de virar estatística

Doze... vinte quatro...quarenta e oito...
4.380 ao final de um ano comemorado em natal e réveillon
Pelos homens de boa vontade

---&&&---
Uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil. Mulheres negras têm ao menos três vezes mais chances de sofrer feminicídio no Brasil.
Dados do Monitor da Violência, uma parceira do portal G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.








domingo, 25 de junho de 2017

Canção de ninar





Em uma manhã de um dia qualquer do início de 2017, despertei com o estampido seco de um tiro. Não sabia se o barulho vinha de um pesadelo. Instintivamente percorri a casa. Os filhos dormiam tranquilamente. O dia ainda não havia clareado. Minutos depois, outro seco disparo. Era o morro da Mangueira em suas costumeiras contendas. O estádio do Maracanã nos separa, mas o gigante dormia também e o seu silêncio deixava nu o que bandeiras, gritos, cores, paixões, gols, defesas, apitos e canções que embalam torcidas organizadas de tempos em tempos camuflam: a canção seca que embala o sono mortal bem ali, do outro lado da estação do metrô.

                Sem conseguir mais conciliar o sono, automaticamente fiz orações, pensei nas tarefas do dia e abri os sites noticiosos. Foi como ter ouvido o terceiro disparo. As manchetes diziam: “Duda queria chegar à seleção de basquete, mas morreu por bala perdida no Rio”. Treze anos. Bebia água no bebedouro. Bairro de Mesquita. Favela do Chapadão. Três tiros de fuzil mataram. A mãe está querendo morrer. Irmão revoltado. Basquete. Medalhas. Duda queria ser atleta. Trinta e dois tiros no muro da escola. Trinta e dois, trinta e dois, trinta e dois... As palavras do noticiário se embaralhavam na tela do computador. A foto da menina negra sorridente. Deitei de olho vidrado no teto.

                Exatamente um ano antes um rapaz de 16 anos que frequentava minha casa tinha morrido assassinado. Muitos tiros dentro do quarto de sua mãe. Ele não queria ser atleta. Ele queria ser ator. Era exímio bailarino. Fiquei ali, tentando achar algum sentido, alguma conexão sei lá com o quê. Minha filha acordou. Veio feito sonâmbula e deitou na minha cama como sempre faz para “terminar o sono” ao meu lado, me sufocando naquele abraço que mais parece uma “gravata” no pescoço. Olhei para o rosto dela. Em três anos fará 13 anos... Ela roncava e eu, chorava.

                Um atleta quer ser mais alto, mais rápido, mais forte. Um atleta quer vencer. Maria Eduarda mal teve tempo de desejar, mal teve tempo de erguer o punho com a bola para arremessar, mal teve tempo de dar um passe certo ou errado. Três entre os trinta e dois tiros de fuzil encerraram seu jogo. No placar, 32 a 0. E sua mãe “estava querendo morrer”, dizia a notícia... 

Qual canção de ninar embala essa nação? Qual sonífero poderoso adormece os corações? Qual injeção entorpecente aniquila a dor pela dor do outro? Qual mortal veneno abocanha os cérebros que banalizam? Onde estão os que piamente se ajoelham? Onde estão os mais altos, mais rápidos e mais fortes?
                Estatísticas. A cada dois dias na região metropolitana do Rio uma bala perdida atinge a carne de alguém. Dia sim, outro não, dia sim, outro não... Quando saberemos se estamos no dia do sim ou no momento do não? Quando saberemos se a carne dilacerada não terá de nós um pedaço?

                Tentei colocar uma flor naquela lápide. Uma flor que estaria sempre fresca, pois dali dois dias outra, outro sucumbiria... Uma flor que no lugar mais profundo espera um dia não ter que desabrochar numa lápide, mas, quem sabe, no jardim da entrada de alguma quadra de basquete ou nos camarins de um teatro lotado.
               
Canção de ninar
(Para Maria Eduarda Alves e todas as vítimas do dia "não")

dorme, moça bonita
deita no berço nação
das balas, só laços e fitas
perdidas no teu coração
não chores a nossa desdita
no leito te aperto a mão
preta pele, cabelos e chitas
alvos fáceis, mira do canhão

embala, mocinha bonita
te abraço, te ergo do chão
a mulher que não foste se agita
clama, implora uma ação

dorme, menina tão rica
de passados,
de tantos irmãos
descansa, criança ferida
o teu corpo é nosso quinhão
de dor, de tristeza, de lida
torpor, loucura e ilusão

para o ventre retornas partida
na barriga da terra o torrão
de onde saíste pra vida
para onde retorna em paixão     

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Iporinchê: Cabelo, cultura e consciência

Esquerda para direita: Rosália Lemos, Maria Ceiça, Lelete Couto, Ediléa Silvério, Nanci Rosa, Ruth Pinheiro, Márcia Ferreira, Iléa Ferraz. Sentadas, Cássia Marinho, Tia Maria do Jongo da Serrinha e Marielle Franco.

Eliana Alves Cruz
Fotos: Nilce Fornasier

 

Na infância, a palavra ‘quilombo’, por conta da forma como eram retratados estes lugares pela escola e pela mídia, sempre me levava para as palavras fuga, esconderijo, medo, sobressalto, precariedade. Isso quando não remetia sem escalas a invasão, captura e tortura. Apenas muito mais tarde ela me conduziu para a ideia de “coragem”, “união”, “resistência” e, principalmente, que esses locais não ficaram perdidos num passado doloroso marcado pela incessante busca por liberdade, mas que existem ainda hoje e podem ser identificados em todos os espaços em que a valorização das questões do negro no Brasil é uma pauta principal.


Outro olhar no espelho


O salão de belezas Iporinchê – uma forma aportuguesada de unir as expressões iorubanas Ipo (lugar), Ori (cabeça) e N’Se (fazer) – é um quilombo moderno. Encravado no coração do bairro carioca da Tijuca, ele faz a cabeça de muita gente boa. Ninguém sai da sala no sétimo andar da galeria Marapuama, na Praça Saenz Pena, sem uma foto, sem ter sua imagem postada em todas as redes do salão. Autoestima é o lema do lugar.

Quem conhece o Rio de Janeiro sabe que a Tijuca é um bairro agradável e familiar, porém talvez seja um dos lugares cariocas onde as tensões sociais mais se verificam. Cercado por morros como Salgueiro, Boréu, Casa Branca e muitos outros, o choque entre a favela e a população de classe média é constante. Tudo isso sem contar o fato de que toma conta de quase dois quarteirões do bairro o famoso quartel da Barão de Mesquita, onde foram encarcerados militantes de peso na época da ditadura militar, entre eles, ex-presidenta Dilma Rousseff.

Um salão afro na Tijuca é resistência e é quilombo, certamente! 

Estava lá dia desses quando uma nova cliente entrou ávida por saber como poderia começar a usar os cabelos naturais. Acompanhei de longe a conversa, que terminou com a frase-resumo: “Tudo é uma questão de você ter um novo olhar sobre você”.

- Toda vez que um cliente chega e senta na minha cadeira, a primeira coisa que eu faço é elogiar o cabelo.Coisas que não estão acostumados a ouvir. E nosso cabelo é muito bonito! Existem várias possibilidades de penteados. O meu trabalho é de conscientização mesmo. Eu procuro passar a confiança. Eu vejo os jovens negros a cada dia mais empoderados e isso não tem volta – disse Cássia, ao inglês The Guardian.

Cássia Marinho, a criadora do Iporinchê, já é uma daquelas personagens que marcam. Desde o início do salão, há 17 anos, sua proposta ia além das questões capilares. No início dos anos 2000, bem antes
do atual momento em que grande parte dos homens , principalmente, das mulheres negras estão buscando liberdade dos alisamentos e produtos que modificam a estrutura dos seus fios, ela já estava nesta trincheira. Saindo do forno está uma linha de produtos com a marca do salão para as crespas e cacheadas, a "Orinchê'

Na verdade, Cássia sempre quis unir a estética com a atitude, com o pensar quem realmente somos. Nas paredes, quadro do falecido ator Antônio Pompeu. Na prateleira, diversos livros. No calendário, rodas de conversas e lançamentos. O Iporinchê é uma mistura de espaço cultural e salão de belezas.

- A ideia era ter um espaço que enquanto a pessoa estivesse se embelezando, pudesse também adquirir cultura. Já fizemos várias coisas. Ciclo de debates, palestras, oficinas e já estamos no segundo ano do lançamento do nosso calendário.

Outra contagem do ano




A contagem dos 12 meses no salão começa em março. O mês dedicado no mundo todo a pensar as questões femininas foi o escolhido para dar início a contagem da autoestima. Em 2016, o calendário homenageou escritoras. Com Carolina Maria de Jesus na capa, de março de 2016 a março de 2017 clientes do salão apresentavam um livro e uma autora. Muitas clientes fiéis. Na festa de lançamento, tive a honra de sentar ao lado da premiadíssima Conceição Evaristo (prêmio Jabuti e Faz a Diferença do Globo), Sandra Almada, Lia Vieira, Helena Teodoro e de Ana Cruz.

Este ano, muitas ativistas em várias áreas deram rosto aos meses do ano ao lado de clientes da casa. Um debate sobre o ativismo no cotidiano da mulher negra fomentou um debate caloroso que ainda contou com uma “canja” das cantoras do grupo Razões Africanas, visto que a homenageada principal, a que ilustra a capa é tia Maria do Jongo da Serrinha, em Madureira.

- Se nós não falarmos de nós e não homenagearmos os nossos ícones, quem irá? Este é um momento em que podemos nos reunir, abraçar, falar. O Iporinchê é isso. É um lugar de fazer a cabeça...e o coração! – finalizou Cássia.

Iporinchê
Rua General Roca, 913 – Sala 706
Tel: 2572-2850




quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O resgate




Cinco vencedores do Prêmio Oliveira Silveira. Foto: Ana Lúcia Zanotelli
Há cerca de cinco anos eu decidi realizar um sonho da vida toda: contar a trajetória da minha família em um livro. Depois de uma pesquisa densa, muito caos, dor, mas, sobretudo muito prazer, consegui colocar o ponto final em ‘Água de Barrela’, uma história que começa na atual Nigéria, vem para a Bahia, o Rio de Janeiro e atravessa três séculos. Um resgate, uma catarse, um desabafo, um alívio e um pedido de benção para os meus mais velhos, pois quem não sabe de onde veio não acerta para onde vai. 

Assim que terminei, quase que num fôlego só inscrevi o texto no concurso literário Prêmio Oliveira Silveira - o primeiro da Fundação Palmares - e para a minha surpresa, ganhei em primeiro lugar.

Decidi escrever sobre a nossa vida real em um romance, quando percebi que ser negro no Brasil implicava em esquecimento e invisibilidade, mais que aos olhos dos outros,  diante do nosso próprio espelho de vida humana. O passado é um espinho encravado em nossa carne. Um incômodo. Não no sentido bíblico de tentação, mas no de angústia pelo desconhecimento das origens que estão impressas na pele e correndo nas veias.


Mais do que os arquivos sobre escravidão queimados nos tempos de Rui Barbosa, o país ― o branco e o negro ― incinerou deliberadamente o dia a dia miúdo dos que aqui foram escravizados. O Brasil dos brancos foi dominado pelo desejo sempre presente de “embranquecer” a população, vontade traduzida em sucessivas orientações políticas de estado.

Como dois exemplos históricos, entre muitos, lembramos a fala de ninguém menos do que a do então Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Oswaldo Aranha, em entrevista para a antropóloga Ruth Landes, em 1938, explicando o Estado Novo, gerado pela Revolução de 1930: "(...) o nosso atraso político, que tornou essa ditadura necessária, se explica perfeitamente pelo nosso sangue negro. Infelizmente. Por isso, estamos tentando expurgar esse sangue, construindo uma nação para todos, limpando a raça brasileira".

Depois, disposições oficiais, como as do Decreto-Lei nº 7.967, de 18/09/1945 (vigente até ser revogado apenas em 19/08/1980, pela Lei n° 6.815), cujo artigo 2° tinha o teor seguinte: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia (...)”.

O Brasil dos negros esqueceu-se de si mesmo, por uma questão muito simples: a escravidão era e ― apesar da evolução da sensibilidade humanista ou das ações afirmativas de todo gênero para a preservação da cultura e da ancestralidade negras ― continua sendo um duríssimo estigma. 

O ano de 2015 na vida nacional em diversos momentos se arrastou feito réptil que vai deixando uma peçonha no caminho. O veneno da violência, da intolerância e do retrocesso. No entanto, como diriam nossas avós, não há bem que sempre dure ou mal que nunca se acabe. Esse quinze terminou nos dizendo: tudo teve um motivo. 

O esforço pelo resgate da nossa identidade, a meu ver, foi um dos pontos altos destes 12 meses conturbados. Todo o movimento deflagrado pelas mulheres brasileiras em 2015 já é motivo de orgulho para todas nós que somos conscientes do que é ser mulher no Brasil, no mundo, hoje e sempre. O que dizer, por exemplo, da Marcha das Mulheres Negras? Nenhuma palavra possui força suficiente para descrevê-la.

Meu livro a Fundação Palmares irá publicar em 2016 e, posteriormente, alguma editora. Agradeço à presidenta Cida Abreu, a todos os membros da Fundação e ao corpo de jurados composto por profissionais do mais alto gabarito, pela oportunidade que nos deram de tirar nossa produção literária das gavetas. Em futuro próximo espero que muita gente possa ler e se emocionar. E que muita gente possa ser incentivada a também escrever. Qualquer lembrança é resgate. Devemos contar. Devemos falar. Não podemos deixar passar. Nossa hora é agora.


Personagens de 'Água de Barrela'. Minha bisavó, Damiana, e minha avó, Celina. Aniversário de 100 anos de Damiana, em 1988.

Foto de acervo familiar, proibida reprodução sem autorização

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O peso do levantamento: “Disseram que não iriam me patrocinar, pois preto não vende”



Foto: Arquivo Pessoal
Josélia Oliveira, 35 anos, tem voz pausada, muito bem articulada, é doce na fala e fera nas atitudes. Antes de chegar aos 30 passava dos 100 quilos, estava hipertensa, com problemas cardíacos e no caminho certo para o fim prematuro, pois entrava no grau dois de obesidade (o máximo é três). Com recomendações médicas para mudar de vida com urgência, Josélia obedeceu prontamente e, entre outras coisas, incluiu o esporte em sua vida. Caminhada? Natação? Corrida? Nada disso. Levantamento de peso.

- Comecei a fazer musculação com um pouco de medo e vergonha, mas quando completou dois meses eu tinha perdido 12 quilos! Fiquei tão empolgada que segui treinando e aí fui chamada para treinar mais sério e competir. Não parei nunca mais. Hoje tenho uma rotina rígida para me preparar para os campeonatos. 

 A estudante de administração, que com a prática esportiva mudou para a cadeira de educação física, enfrenta uma hora e meia todos os dias para sair do bairro carioca de Senador Camará e chegar a Escola de Levantamento de Peso Olímpico Aline Campeiro, no Engenho Novo; luta para se manter competitiva e em sua categoria - até 60 quilos - e coleciona os títulos de campeã brasileira de supino, campeã estadual de levantamento de peso básico, entre outros. 

Foto: Arquivo Pessoal
Josélia, assim como muitos, sempre teve que lidar com o racismo, mas na fase que estava com sobrepeso também precisou enfrentar a rejeição aos obesos e, desde que começou a levantar peso, sente os preconceitos contra as mulheres que fazem “esportes de homem”. Somado a isso tudo, o estigma que ronda a modalidade: Doping.

- Nós temos uma rotina muito intensa de treino. O desempenho é devido à disciplina na prática, na repetição, na alimentação e com a vida regrada. Dopagem existe em todos os esportes, mas não é da forma como as pessoas imaginam e não são todos os atletas. Mais uma vez o desconhecimento gerando preconceitos. Ainda associam força apenas aos homens. Nós, mulheres praticantes, ouvimos muitas coisas desagradáveis e machistas. Sempre nos associam à homossexualidade, como se isso fosse algum demérito. Mas a gente ignora e segue em frente. Essas ideias apenas serão quebradas com mais informação. Esporte é para o ser humano. Não tem essa de esporte para homem, para mulher... Todos podem. Não existe limitação. A pessoa tem apenas que se identificar com a atividade, se cercar dos cuidados médicos e começar. Não importa a idade, a cor, nada.
Foto: Arquivo Pessoal
 Em tempos tão esportivos, em que o Brasil sediou uma Copa do Mundo, está prestes a realizar uma Olimpíada e que este ano teve em Toronto, no Canadá, suas primeiras medalhas pan-americanas femininas no Levantamento de Peso (dois bronzes com Jaqueline Ferreira e Bruna Piloto) a busca por patrocínios continua a ser o calcanhar de Aquiles de grande parte dos atletas, mas se este competidor é mulher e se esta mulher for negra...

- Num evento de nutrição, que acontece regularmente aqui no Rio de Janeiro, em 2013, fui conversar com algumas empresas e de uma delas eu ouvi que não valeria a pena me patrocinar porque "preto não vende". A resposta foi muito ofensiva e eu sei que é isso o que muitas empresas pensam. O material é caro, tem as viagens... É muito duro conseguir apoio. Temos um desafio a mais porque o racismo existe. Isso faz com que muitas atletas desistam, pois é difícil custear. Consigo me manter no esporte porque tenho a ajuda de amigos e recebo doação de material. Uma escritora de São Paulo, por exemplo, me doou livros para revender e obter recursos para competir. Tenho uma amiga no site www.ateltasbrasil, que ajuda atletas que não tem patrocínio e também recebo algum auxílio por lá.


Prestes a coordenar o braço social do espaço gastronômico ‘Bele Bele Cubano’, que será criado pela empresa Tur Chefe América, do chefe de cozinha cubano Fernando Calderón Boris, para apoiar alguns atletas, Josélia se desdobra para concluir a faculdade de Educação Física com muitos sonhos para o futuro. 

Foto: Arquivo Pessoal
 
- Agora pretendo participar do Campeonato Sul-Americano e de outros campeonatos internacionais. Quero continuar no esporte que eu amo. Abracei o levantamento de peso. Olho a barra e os meus olhos brilham, então vou continuar me dedicando e buscando apoio. Gostaria muito de treinar crianças. No Brasil, em cada esquina tem uma escolinha de futebol, mas nem toda criança será o Neimar! Existem outros esportes. É preciso diversificar. A riqueza do Brasil é imensa também no campo esportivo.

Por superar tantos preconceitos e continuar na luta, Josélia, você é uma Flor da Cor!