domingo, 25 de junho de 2017

Canção de ninar





Em uma manhã de um dia qualquer do início de 2017, despertei com o estampido seco de um tiro. Não sabia se o barulho vinha de um pesadelo. Instintivamente percorri a casa. Os filhos dormiam tranquilamente. O dia ainda não havia clareado. Minutos depois, outro seco disparo. Era o morro da Mangueira em suas costumeiras contendas. O estádio do Maracanã nos separa, mas o gigante dormia também e o seu silêncio deixava nu o que bandeiras, gritos, cores, paixões, gols, defesas, apitos e canções que embalam torcidas organizadas de tempos em tempos camuflam: a canção seca que embala o sono mortal bem ali, do outro lado da estação do metrô.

                Sem conseguir mais conciliar o sono, automaticamente fiz orações, pensei nas tarefas do dia e abri os sites noticiosos. Foi como ter ouvido o terceiro disparo. As manchetes diziam: “Duda queria chegar à seleção de basquete, mas morreu por bala perdida no Rio”. Treze anos. Bebia água no bebedouro. Bairro de Mesquita. Favela do Chapadão. Três tiros de fuzil mataram. A mãe está querendo morrer. Irmão revoltado. Basquete. Medalhas. Duda queria ser atleta. Trinta e dois tiros no muro da escola. Trinta e dois, trinta e dois, trinta e dois... As palavras do noticiário se embaralhavam na tela do computador. A foto da menina negra sorridente. Deitei de olho vidrado no teto.

                Exatamente um ano antes um rapaz de 16 anos que frequentava minha casa tinha morrido assassinado. Muitos tiros dentro do quarto de sua mãe. Ele não queria ser atleta. Ele queria ser ator. Era exímio bailarino. Fiquei ali, tentando achar algum sentido, alguma conexão sei lá com o quê. Minha filha acordou. Veio feito sonâmbula e deitou na minha cama como sempre faz para “terminar o sono” ao meu lado, me sufocando naquele abraço que mais parece uma “gravata” no pescoço. Olhei para o rosto dela. Em três anos fará 13 anos... Ela roncava e eu, chorava.

                Um atleta quer ser mais alto, mais rápido, mais forte. Um atleta quer vencer. Maria Eduarda mal teve tempo de desejar, mal teve tempo de erguer o punho com a bola para arremessar, mal teve tempo de dar um passe certo ou errado. Três entre os trinta e dois tiros de fuzil encerraram seu jogo. No placar, 32 a 0. E sua mãe “estava querendo morrer”, dizia a notícia... 

Qual canção de ninar embala essa nação? Qual sonífero poderoso adormece os corações? Qual injeção entorpecente aniquila a dor pela dor do outro? Qual mortal veneno abocanha os cérebros que banalizam? Onde estão os que piamente se ajoelham? Onde estão os mais altos, mais rápidos e mais fortes?
                Estatísticas. A cada dois dias na região metropolitana do Rio uma bala perdida atinge a carne de alguém. Dia sim, outro não, dia sim, outro não... Quando saberemos se estamos no dia do sim ou no momento do não? Quando saberemos se a carne dilacerada não terá de nós um pedaço?

                Tentei colocar uma flor naquela lápide. Uma flor que estaria sempre fresca, pois dali dois dias outra, outro sucumbiria... Uma flor que no lugar mais profundo espera um dia não ter que desabrochar numa lápide, mas, quem sabe, no jardim da entrada de alguma quadra de basquete ou nos camarins de um teatro lotado.
               
Canção de ninar
(Para Maria Eduarda Alves e todas as vítimas do dia "não")

dorme, moça bonita
deita no berço nação
das balas, só laços e fitas
perdidas no teu coração
não chores a nossa desdita
no leito te aperto a mão
preta pele, cabelos e chitas
alvos fáceis, mira do canhão

embala, mocinha bonita
te abraço, te ergo do chão
a mulher que não foste se agita
clama, implora uma ação

dorme, menina tão rica
de passados,
de tantos irmãos
descansa, criança ferida
o teu corpo é nosso quinhão
de dor, de tristeza, de lida
torpor, loucura e ilusão

para o ventre retornas partida
na barriga da terra o torrão
de onde saíste pra vida
para onde retorna em paixão