sábado, 2 de maio de 2015

Maestrina Alba: “Você tem uma história belíssima a ser contada”



Foto: Orquestra Filarmônica de Minas Gerais

 - Não precisa se preocupar tanto porque não vai muito longe, afinal, você é de cor.

Com esta frase um professor disse a Alba Christina Bomfim Souza - professora de regência e prática de orquestra na Universidade Federal do Piauí - que ela não precisava cuidar tanto em aprimorar a técnica para tocar o violoncelo, mas com a batuta nas mãos ela hoje rege orquestras pelo mundo e mais que isso, rege a própria vida estabelecendo novos paradigmas e provando que lugar de mulher também é na frente da sinfônica. Alba passou em primeiro lugar no concurso que a fez professora da Universidade do Piauí e em terceiro para outro concurso para a Universidade Federal do Pará.


- O Piauí me chamou primeiro. Engraçado que mesmo tendo sido a primeira colocada no concurso, muita gente não conseguia enxergar a minha competência técnica. Eu digo que a gente não tem que matar um leão por dia, mas um leão a cada turno! . A regência é uma área muito peculiar dentro da música. É um cargo político e também diplomático porque o regente acaba sendo uma espécie de porta voz da orquestra. Assim que cheguei percebi que se eu quisesse avançar teria que vir para o exterior. Mas esses obstáculos me impulsionaram a buscar novas oportunidades.

Foto: Filarmônica das Beiras/POR

Alba era a caçulinha de quatro irmãs, que comigo e minha irmã formava o grupo de seis meninas negras amigas desde o início dos anos 80. Ela cresceu e hoje tem um currículo que, como se diz no popular, “bota-pra-quebrar”. Bacharel em Direção (2001) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, licenciada (1995) e mestre (2009) em Música pela Universidade de Brasília. Venceu o Concurso Internacional de Jovens Regentes de Orquestra Eleazar de Carvalho de 2009, realizado em Fortaleza, integrou o naipe de violoncelos da Sinfónica Jovem do Estado de São Paulo, Filarmônica do Rio de Janeiro, Sinfônica Nacional, Sinfônica Brasileira e Jovem e Camerata do Conservatório Brasileiro de Música.

Atualmente ela está e
m Portugal, na Universidade de Aveiro sob a orientação do Maestro Antônio Vassalo Lourenço, em plena produção para concluir seu doutorado, do qual sairá PHD em 2018, em Direção de Orquestra. Ela falou desta área ainda muito pouco explorada pelas mulheres e principalmente pelas mulheres negras no Brasil.

- No início eu sofri bastante. A gente sabe que no Brasil o preconceito é velado e o mundo da música é muito fechado e restrito. Ainda é um universo muito masculino, então a descrença comigo vinha de duas frentes, ou seja, por eu ser negra e por ser mulher. Se hoje estou aqui professora que leciona no nordeste, com mestrado, fazendo um doutorado diferenciado do qual vou sair PHD é porque estou “furando” um esquema pesadíssimo.



Foto:Astoria Symphony/Nova York
O regente de uma orquestra – assim nos condicionou o imaginário coletivo – é um homem branco, maduro e com uma história, muitas vezes que atravessou gerações, na música clássica.  Mas Alba vai imprimindo sua marca sem se importar com os rótulos. O som profundo e emocionante do violoncelo abriu as portas da carreira para a menina carioca, filha de militar que foi morar em Brasília e estudava piano na escola da quadra. Depois de anos na escolinha, incentivada pela mãe se inscreveu e foi sorteada para cursar o Centro de Educação Profissional – Escola de Música de Brasília.

- Eu achava que não tinha “lastro” para música. Meus pais sempre incentivaram a mim e as minhas irmãs a estudar música, então eu tinha base sim. Éramos uma família como muitas de classe média, que embora tenha algumas coisas, faltam outras e não tínhamos condição de ter um piano em casa. Somos quatro filhas! Eu estudava piano na escola da quadra. Quando entrei para a Escola de Música de Brasília, passei por todos os instrumentos e lá pelos 14 anos escolhi o violoncelo. Foi quando comecei a praticar a forma correta de me posicionar no instrumento que o professor disse aquilo. Mais tarde eu me tornei colega dele como professora da mesma escola e descobri que ele teve palavras depreciativas com muitas outras meninas. Uma porque era negra, outra porque ele achava que era bonita demais, outra porque era gordinha... Então é algo que vai além da questão étnica. Tem um machismo enorme no meio – contou.

Arquivo Pessoal/ Escola de Música de Brasília

Em Aveiro, Alba está pesquisando como a orquestra conquista sua plateia. Como ela capta a atenção, e aí entram estudos de comunicação e marketing; como atua na formação do público, o que está relacionado com a área de educação; e como arrebata no momento da exibição, entrando assim no terreno das artes cênicas.

- Essa é a minha pesquisa, minha produção intelectual. Cada vez mais teremos tudo junto, tudo integrado, ou seja, teatro, música, fotografia... Várias expressões artísticas num mesmo espetáculo. A minha produção prática são as diversas obras que estamos executando para estudar cada aspecto desses. Temos trabalhos voltados para crianças, para idosos, para as famílias. Executamos também musicais da Broadway, músicas populares. Não se trata apenas de um repertório europeu ocidental clássico. Como pesquisadora eu digo que música popular, especificamente a nossa música popular brasileira é um enorme desafio. O que ela já foi, o que é e o que pode vir a ser. Temos ritmos e sons muito sofisticados. Sim, o samba, a bossa nova e muitas outras coisas que temos são sofisticadas!

O Brasil é o objetivo de Alba Christina. Seus planos são retornar para casa assim que concluir o trabalho em Portugal. Quer replicar o que aprendeu e ajudar a formar outras artistas.

Foto: Filarmônica das Beiras/POR
- Na música você encontra o discurso do limite de idade, da hereditariedade e outros mitos. Comparados aos europeus, nós começamos realmente mais tarde a iniciação musical por todas as questões sociais e históricas que já sabemos. Para quem está no meio às oportunidades aparecem, mas como entrar? Como estar no meio? Entre os vários amigos que começaram comigo conto nos dedos quantos continuaram. Me sinto realizada pela questão da superação, mas agora que estou aqui, me pergunto como vou mais longe e como vou multiplicar a minha experiência, repassar tudo o que aprendi e estou aprendendo. Tenho que ser multiplicadora. A equipe da orquestra aqui é super pequena e consegue muito, ou seja, posso replicar essa estrutura em Teresina ou em qualquer lugar pequeno como Sobradinho (cidade satélite de Brasília), obviamente respeitando as diferenças locais. Essa é a função da arte. É ir a todos os lugares e levar novos significados – explicou.

Apesar dos obstáculos, das desconfianças, julgamentos e rótulos, Alba incentiva a todos os que pensam um dia trilhar um caminho parecido ao seu.

- Acredite e trabalhe para concretizar, pois você tem uma história belíssima a ser contada. Não fique apenas nos sonhos, arregace as mangas para fazer acontecer, pois estamos vencendo e esse é um caminho sem volta. Olhamos para trás e para os preconceitos sofridos para não esquecer que isso existe e que está em nosso caminho, na nossa história, mas não podemos deixar que nos paralisem. Esse é maior legado que quero deixar para os meus sobrinhos, para as nossas crianças.

Silêncio na plateia, pois o espetáculo vai começar!


sábado, 25 de abril de 2015

Daiane dos Santos: “Ousem mais!”



“Bah, a guria tem que ouvir que é linda desde o dia em que nasce!” Foi ouvindo seu delicioso sotaque gaúcho que conversei com Daiane dos Santos - a moça de 1,46m que encantou o mundo com sua explosão e precisão na ginástica artística, fazendo movimentos complexos e ao mesmo tempo harmoniosos ao som do choro ‘Brasileirinho’, de Waldir Azevedo. Falamos sobre esporte, sobre projetos, sobre ser mulher e, principalmente, sobre ser mulher negra.

A conversa, que era para ser rápida, pois estávamos as duas em intervalos de atividades num papo pelo telefone, foi empolgando e tomando o tempo que, ao menos para mim, foi excelente e precioso.

O que me motivou a conversar com Daiane foi acompanhar por intermédio de relatos doídos e periódicos de uma amiga, o drama recente de sua filha, uma menininha negra que praticava ginástica artística em um clube conhecido. Excluída pelas colegas e suas mães - muitas nem ao menos olhavam para ela – e, apesar de seus bons resultados, preterida pela equipe em situações cotidianas, a criança estava deprimida e desestimulada para continuar no esporte.

Quem viu a poderosa Daiane em ação nos tablados mundo a fora, não imagina que ela passou por algo muito semelhante ao ocorrido com a filha da minha amiga. E já começou nossa conversa dando nome aos bois. Com a palavra, Daiane dos Santos.

- O Preconceito é uma praga! Ele sempre existiu, mas era velado. Agora, principalmente com a internet tudo é exposto na hora. O ser humano é naturalmente preconceituoso. As pessoas tem a tendência a rejeitar o que é diferente delas. Quem disse que o cabelo crespo é ruim? Quem disse que negro é feio? Quem disse que o nosso corpo é menos que o de qualquer outra pessoa? Quem estabeleceu estes padrões? Acho que esse trabalho de auto-estima tem que ser feito em casa.  Muitas famílias não preparam as crianças para enfrentar isso. Negam a existência e aí quando a menina vai pro mundo sofre. Estou te entendendo porque dói quando vemos uma criança sendo alvo de preconceito. Dói nela e dói em nós.
Jogos Pan-Americanos de Winnipeg 1999 - Foto: Uol
Relembrando a trajetória da atleta Daiane, ela começou na modalidade aos 11 anos, mais tardiamente que a maioria das ginastas, que geralmente iniciam por volta dos seis anos ou menos. Foi descoberta na Associação dos Amigos do Centro Estadual de Treinamento Esportivo pela professora Cleusa de Paula e mais tarde passou a defender o clube Grêmio Náutico União, ambos em sua cidade natal: Porto Alegre. Tão complicado quanto o treinamento pesado da ginástica foi superar os rótulos e a descrença.

- Aconteceu comigo quando comecei a disputar em clube grande. Algumas mães e também muitas crianças não falavam comigo! Simplesmente me ignoravam. Eu não me importava. Mas por que eu não me importava? Fui trabalhada em casa. Lembro que muita gente perguntava: “Por que você escolheu ginástica? Por que não faz atletismo que tem mais a ver com o seu biótipo?”

E eu me perguntava: “Por que não poderia fazer outro esporte que não fosse atletismo? É algum reduto só para negros?” Estes são estereótipos ainda difíceis de quebrar, mas estamos progredindo!

Ela apareceu para o Brasil inteiro em 1999, nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg/CAN, quando ganhou a prata na prova de salto e bronze em solo e por equipe. Dois anos mais tarde, em 2001, terminaria na quinta posição no Campeonato de Gante, na Bélgica e em 2003, depois de mudar-se para Curitiba onde treinava com o técnico ucraniano Oleg Ostapenko, ela ganhou a primeira medalha de ouro para o Brasil na história de um Campeonato Mundial de Ginástica, na californiana Anaheim, fazendo pela primeira vez o duplo twist carpado, movimento com altíssimo grau de dificuldade e que ganharia o nome de Dos Santos, pois foi a primeira atleta no mundo a executá-lo.

Catalina Ponor, Daiane e Elena Gomez
Pódio Mundial de Ginástica 2003
AFP Photo / Robyn Beck

Nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, ela chegou como favorita, mas um passo dado para fora do tablado a tirou do pódio colocando-a na quinta posição, mesmo assim este foi o melhor resultado da história do país na modalidade até então.

O ciclo que culminou com os Jogos de Pequim 2008 foi atribulado, com sérias lesões. No Pan de 2007, no Rio de Janeiro, ela competiu machucada, mas ainda assim conseguiu uma medalha de prata por equipes. Nas Olimpíadas da China surpreendeu e conseguiu a sexta posição no solo. 


Daiane decidiu parar em 2013, após sua terceira Olimpíada, devido às dores no joelho. Em Londres 2012, ela foi a melhor brasileira na competição, terminando em 17º lugar no solo. O fim da carreira de atleta, no entanto, a alçou a outros patamares e libertou suas longas horas de preparação para que ela possa desempenhar outras funções e cumprir outros papéis na sociedade.

Jogos Olímpicos de Atenas 2004 - Foto: Julio Guimarães/ LancePress



- Acho que o mundo do esporte é difícil para as mulheres em geral e mais difícil ainda para a mulher negra, pois enfrentamos o preconceito explícito e o mascarado. Mesmo depois de adulta, muita gente ainda não falava comigo e sei que o motivo era esse. Isso te revolta, mas sempre tive em mente que não era eu quem tinha que me envergonhar de nada e sim eles. Hoje faço parte da ‘Comissão da Mulher no Esporte’, do Comitê Olímpico Brasileiro, e estamos estudando algumas questões particulares femininas na área médica e social. Não queremos privilégio algum, apenas igualdade de tratamento e atenção com as nossas particularidades.

O trabalho específico de gênero desenvolvido por diversas confederações esportivas e também pelo Comitê Olímpico Brasileiro, segundo Daiane e várias outras atletas, tem surtido efeito.

- Para a equipe olímpica brasileira dos Jogos de Londres, 45% das medalhas foram femininas, então, vemos que melhorou muito. No entanto, ainda temos esportes em que o preconceito é fortíssimo, como no caso das lutas e do futebol. Grande parte da nossa sociedade ainda torce o nariz quando vê uma mulher lutando ou jogando futebol. Somente agora temos um centro de excelência para o feminino e temos uma das maiores jogadoras do mundo (Marta Vieira da Silva, prata nos Jogos Olímpicos de Atenas 2004 e Pequim 2008. Melhor jogadora do mundo pela FIFA de 2006 a 2009 e Bola de Ouro da FIFA EM 2010). Eu sou bem feminista. Estamos ganhando muito espaço, mas acho que precisamos nos unir mais. Vejo as mulheres de um modo geral ainda muito pouco mobilizadas. Podemos mais! No caso específico das mulheres negras creio que o trabalho feito em casa é 50 por cento. Se você ouve desde cedo coisas como “Você é linda como você é. Não existem pessoas iguais, cada um é bonito com a sua diferença” tudo fica mais fácil porque é algo em que você acredita de verdade. É um valor que está entranhado em você.

Nossa conversa terminou com um recado e um desafio não só para a minha amiguinha ginasta, mas para todas as meninas (negras ou não).

- Para as atletas que estão chegando agora e não apenas as atletas, mas para todas as meninas eu diria: “Quero que consigam ser melhores que nós. Que ousem mais, que sejam mais corajosas e quebrem todas as barreiras impostas”.

Copa do Mundo de Ginástica 2012 - Foto: Ricardo Bufolin/Divulgação


Assim será, querida “Flor da Cor” Daiane dos Santos!













  


domingo, 8 de março de 2015

Dia oito de março não é 25 de dezembro


“Feliz dia da mulher!”
O dia não tinha chegado ao seu primeiro quarto e eu já havia recebido felicitações das mais diversas fontes. Agradeci, obviamente, pois a educação dada com tanto sacrifício por mamãe e papai não me deixam fazer nada diferente, mas apenas para esclarecer: A data não é uma comemoração. Ela é um protesto. É um grito. Algo como “Oi, mundo! Ainda estamos aqui e queremos muito mais!”
A publicidade, esse instrumento que para vender (produtos ou ideologias), se apropria e distorce tudo, tratou logo de “resignificar” a data. Fez dela algo como um dia das mães, dos pais, dos namorados, natal, etc. Não é. Não existe um consenso histórico sobre o seu surgimento. Alguns dizem que remete a um incêndio numa fábrica de tecidos em Nova Iorque e outros fazem menção a manifestações nesta mesma fábrica. Não importa. O fato é que foi estabelecida em 1909 como protesto a péssimas condições de trabalho.

E o que vemos hoje, 116 anos depois da sua primeira “comemoração”? Péssimas condições de trabalho. Tudo bem, avanços aconteceram, mas a passos de cágado se sairmos da caixinha pensando no planeta como um todo. E se a coisa é feia para a mulher, piora consideravelmente se essa mulher for negra.
No Brasil, uma análise do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Estatísticas e Sociais das Relações Raciais do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LAESER) manda o papo reto em números. Sob qualquer ponto de vista a diferença é escandalosa.

Em dezembro de 2013, analisando os dados da população economicamente ativa das maiores regiões metropolitanas do país – Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre – a média de ganhos de um homem branco era R$2.787,44. A mulher branca vinha em seguida (R$2.031,77), depois já descendo a ladeira significativamente os homens negros ou pardos (R$1.561,06) e por último elas, as mulheres negras ou pardas (R$1.200,84).A taxa de desemprego no mesmo mês era de 2.9% para os homens brancos, 4,2% para mulheres brancas e homens negros e pardos, e 6,7% para mulheres negras e pardas! Veja a pesquisa completa aqui.

Quem é minimamente observador notou que na última campanha eleitoral todas as âncoras dos programas dos partidos na TV eram mulheres negras. E porque isso se deu? Simples, somos a base da pirâmide social e as pessoas que no final das contas podem decidir uma eleição. Em contrapartida quais são as políticas públicas voltadas para este segmento nas três esferas de governo (Municípios, Estados e Federação)? Deixo aí um trabalhinho de casa. 


Agora é minha vez de dar os parabéns àquelas que além das agruras no mercado de trabalho, ainda tem que aturar o preconceito contra o seu cabelo, o seu modo de vestir, o seu corpo todo enfim! Para as que ainda tem que assistir  todo tipo de estereótipo mediático e não podem nem reclamar sem serem tachadas de “paranóicas”. As que sofrem violência doméstica (física e/ou psicológica), criam os filhos em grande medida sós e mesmo com brigas, choro, momentos de desespero... Vencem!
Queremos, precisamos, merecemos e exigimos mais, muito mais!


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A fotógrafa Alice no país das maravilhas... Africanas!

Benim 2013
O que o Benim, a Alemanha e o Brasil tem em comum? A fotógrafa Alice Kohler. Ela é catarinense residente no Rio de Janeiro desde os dois anos de idade, descendente de alemães e é apaixonada pela África. 

O Benin, na parte ocidental do continente, abriu em 2013 as portas do mundo africano para Alice, que lá esteve para realizar um trabalho social. E a África lhe tomou o coração, pois voltou em 2014, para a Namíbia, na porção austral (faz fronteira com Angola, África do Sul, entre outros) onde conviveu com o belo povo Himba; e se prepara para retornar este ano, desta vez para o Kênia. 

Como não é segredo para ninguém, África, Brasil e Alemanha também tem em comum um passado colonial de muita violência e exploração. Ironicamente, em fins do século 19 (1884) a Namíbia se tornou um protetorado alemão que, como em todo processo colonizador, foi alvo de atrocidades por parte dos colonizadores.

Benin e Brasil tem absolutamente tudo a ver, pois de lá saíram milhares de escravos para mover com seus braços a economia do império brasileiro. Embarcando em Porto Novo, sua capital, ou da fortaleza de Uidá, chegaram amontoados nos porões e desembarcaram em sua maioria na Bahia. O antigo reino do Daomé é uma ex-colônia francesa, mas que mantém vivo o fon e tantos outros idiomas e etnias que lá estão e aqui também, misturados no nosso caldeirão.



Benim 2013
Benim 2013
No Benin, Alice viu de perto a dura face da escravidão, cuja prática ainda persiste, apesar dos esforços para o combate. Ela surge como um legado macabro do sistema que por séculos pôs as engrenagens da sociedade para funcionar baseado nesta perversa lógica. Mas também travou contato com uma civilização que resiste e mantém sua cultura.Disparou seu obturador e sacou milhares de fotografias de grande plasticidade.



Do Daomé vieram os voduns, que erroneamente foram no "mundo novo" identificados com a "magia negra", "feitiçaria" e daí em diante. O vodum é a forma portuguesa e voodoo a forma inglesa de escrever vôdoun, que são as divindades, ancestrais míticos ou históricos  do povo fon. Uma religião sofisticada, que na diáspora negra ganhou novos contornos.

Benim 2013


Jovem 'Himba', da Namíbia.
















As imagens registradas por Alice são mágicas porque levantam, mesmo que por alguns breves instantes, o véu do nosso passado. 


Mulheres do povo 'Himba', da Namíbia.
Botswana 2014

Benim, Namíbia, Botswana, Kênia... flores da cor!



sábado, 24 de janeiro de 2015

Luisa Mahim: “Sou negra mina, sou nagô, sou jêje, sou pagã e libertária”



Representação de Luisa Mahin / Luiz Gama


Uma quituteira nas ruas de Salvador auxilia na articulação de uma rebelião. Ela ocorre, acontece delação, 70 pessoas são mortas, 281 presas e ela - a revolta - bem como a quituteira entram para história do Brasil como símbolos do não conformismo com a escravidão.

No domingo dia 25 de janeiro de 2015 completam-se 180 anos da Revolta dos Malês,  uma das maiores e mais impressionantes rebeliões escravas ocorridas no país e este deveria ser tema de uma enxurrada de programas e debates, assim como a pessoa a quem atribuem a frase que abre este texto: Luísa Mahin

Luísa é um mito. Para grande parcela ela personifica o emblema da luta, da não entrega, da coragem, da ousadia. Um nome que deveria ter tudo o que certamente não terá este ano, que são matérias em jornais, especiais na TV, a divulgação em larga escala do que representou. E não preciso nem dizer o porquê disso não ser notícia...

Apenas recapitulando rapidamente para os que ainda não foram apresentados a esta personagem e à famosa revolta (Se este é o seu caso não se acanhe! Leia em obras de bons historiadores eescritores. Tem uma listinha bacana no final. É uma passagem sensacional e essencial para entender mais o nosso Brasil. Fica a dica).

A palavra ‘malê’ vem do iorubá ‘imalê’ e signfica ‘muçulmano’. Esta era uma expressão genérica para designar os provenientes do povo mahi (do Benin) e outros negros islamizados como hauças, tapas, bornus, etc. Africanos das etnias jêje e nagô que foram os articuladores e protagonistas da revolta que em 1835 apavorou a província e em grande medida, o país. O objetivo era ousado: Tomar o poder, libertar os africanos, confiscar os bens dos brancos e mulatos e estabelecer uma monarquia islâmica.

Os planos foram cuidadosamente elaborados, dizem, pelos que tinham experiência anterior de combate na África. Todas as mensagens eram escritas em árabe e - segundo consta - corriam entre os revoltosos escondidas no tabuleiro de Luisa. Mais de 600 pessoas participaram da revolta que de acordo com João José dos Reis – autor de Rebelião Escrava no Brasil – levando em consideração a população da época corresponderia hoje a 24 mil pessoas.

Os planos de ataque eram assinados por um escravo de nome Mala Abubaker. Eles sairiam do atual Porto da Barra para o centro de Salvador, tomariam o poder, rumariam para o Recôncavo onde tinham infiltrados nos engenhos para libertar os escravos por lá. Após a repressão do levante que durou dois dias, as penas foram da execução de quatro identificados como os principais líderes até os castigos corporais, trabalho forçado e exílio. De Luisa diz-se que foi deportada para a África, que fugiu para o Rio de Janeiro ou ainda para o Maranhão.

Muito se fala sobre aquela que teria sido a mãe de Luiz Gama, o advogado dos escravos, que é reverenciada e homenageada pela comunidade negra no Brasil, mas como  ainda não apareceram documentos que atestem inequivocamente a existência de Luisa, realidade e imaginação se mesclam numa figura que já extrapolou o personagem histórico em si. Tudo é dúvida e tudo é certeza! Luiz Gama revelou numa carta autobiográfica enviada em 1880 ao amigo Lúcio de Mendonça algumas pistas sobre sua mãe.

"Sou filho natural de negra africana, livre, da nação nagô, de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto sem lustro, os dentes eram alvíssimos, como a neve. Altiva, generosa, sofrida e vingativa. Era quitandeira e laboriosa."

A partir daí surgiram poemas, histórias, estudos, elucubrações, hipóteses.  E Luiz também dedicou a ela os versos de ‘Minha Mãe’, publicados no livro ‘Primeiras Trovas Burlescas de Getulino’ e que começam com ...

“Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!”

Amuleto malê. Apreendido entre os revoltosos de 1835.
O legado deixado pelos povos islamizados é vasto na nossa cultura. Vai de temperos e comidas, a vestimentas e práticas religiosas, mas é curioso observar como o brasileiro mediano se vê totalmente apartado do universo muçulmano.

Não sei bem no que daria caso os malês tivessem tido sucesso. Fazendo um exercício de imaginação certamente não seria nada do que particularmente sonho para a minha pátria... Mas tão pouco isso que temos é o que desejo para mim, meus filhos e os que virão depois, logo, o recado dado por eles segue mais atual do que nunca: Definir o que se quer, planejar e lutar por isso!

Dicas legais de leitura sobre Luisa Mahin e a Revolta dos Malês:

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835.
Companhia das Letras, 2003.

GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça: São Paulo, 25 de julho de 1880 In:
Luiz Gama o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luíza Mahin. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

ARACI, Nilza, PEREIRA, Maria Rosa e RUFINO, Alzira. A mulher negra tem história.
Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista/Prefeitura Municipal de Santos, s.d.

ALVES, Mirian. Mahin amanhã. Cadernos Negros, nº 9 (1986): p.46.



segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Um quilombo chamado Carolina Maria de Jesus!

28 de maio … A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.”(Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus).

Enganam-se os que pensam que quilombo é apenas um local para onde os negros (ou qualquer um com ânsia de liberdade) fugiam. Penso que um quilombo é, sobretudo, um local de resistência fincado no coração da hostilidade. Uma ilha cercada de rancores, raivas e ódios por todos os lados, mas que não se entrega sem luta. Sendo assim, um quilombo pode ser um lugar e também uma pessoa.

Zumbi dos Palmares era ele próprio um quilombo, assim como Dandara, Aqualtune e todos os que ali resistiram à opressão. Desta mesma forma, Carolina Maria de Jesus, a escritora catadora de lixo que registrou seu dia-a-dia na favela paulistana do Canindé em 35 cadernos, era sozinha um quilombo inteiro.

Os cadernos de Carolina viraram o livro “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada”. Resistindo em meio ao ódio e o desprezo da São Paulo da metade do século passado (e que se mostra ainda feroz nesta segunda década do século 21), Carolina expôs todas as feridas. As dela e as da sociedade doente. Ela foi descoberta quase que por acaso, quando o jornalista Audálio Dantas, do Diário de São Paulo, fazia matéria sobre um parque na capital. Ali ele soube da catadora de lixo que era escritora e, curioso, foi conferir sua produção. Impressionado, correu para o jornal e a história daquela mulher correu a cidade. 

Quarto de Despejo foi publicado em agosto de 1960. A tiragem inicial de 10 mil exemplares esgotou em três semanas. O livro foi traduzido em 13 idiomas e se tornou um best-seller na Europa e na América do Norte. A menina que cursou apenas até o segundo ano do que hoje é o ensino fundamental ficou famosa e conseguiu mudar para uma casa de tijolos no subúrbio graças ao livro, no entanto, ganhou o ódio de seus vizinhos, que no dia da mudança atiraram penicos cheios nela e nos filhos, a chamavam de prostituta negra, a acusavam de ganhar dinheiro falando da favela, mas sem repartir o dinheiro. Uma pessoa que não se encaixava. Ignorada pelos de cima, hostilizada pelos de baixo, Carolina apenas resisitia "aquilombada" em si mesma... escrevendo.



“…Eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o Jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.”  (Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus).

O sucesso é efêmero, dizem. E é verdade. Apesar da fama, Carolina Maria de Jesus, nascida em 14 de março de 1914, morreu esquecida e pobre, de insuficiência respiratória em 13 de fevereiro de 1977. Em 2014 comemoramos os 100 anos desta mulher guerreira, que nos lançou um doído grito de socorro em suas obras. Apesar dos avanços ele ainda ecoa, ele ainda dói em muitas como ela, ele ainda lateja em todos os que se importam.

“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”

A fome do corpo nós estamos aos poucos vencendo. Sair do mapa mundial da fome no mundo não é pouca coisa. No entanto, a fome por verdadeira inclusão, por verdadeira justiça, por verdadeira aceitação do outro, esta ainda está bem longe de ser aplacada. Resgatar Carolina Maria de Jesus é lembrar do que não podemos nunca, jamais e em tempo algum esquecer.

Livros publicados
•    Quarto de despejo (1960)
•    Pedaços de fome (1963)
•    Provérbios (1963)

Publicação póstuma
•    Diário de Bitita (1982)
•    Onde Estaes Felicidade (2014)


sábado, 1 de novembro de 2014

A Rainha Viúva

Se eu fosse escrever um roteiro de cinema para esta história, a primeira cena deste filme  poderia mostrar um negro fujão ainda preso em suas algemas chegando exausto ao quilombo e, auxiliado pelos hábeis ferreiros que habitavam o lugar, se libertando das correntes. Na sequência estas mesmas correntes estariam na forja e seriam transformadas em armas e instrumentos de trabalho.  Foi deste jeito, usando os próprios objetos que os torturavam para produzir o que os defendia e alimentava, que Tereza de Benguela reinou por duas décadas, de 1750 a 1770, no quilombo do Quariterê, em Mato Grosso, na região do Vale Guaporé, que ficava próximo à fronteira de Mato Grosso com a Bolívia.

Tereza é famosa. Provavelmente africana nascida na angolana Benguela, ela é tema de teses, verbete de livros e já desfilou na avenida Marquês de Sapucaí levada pelo talento do genial Joãozinho Trinta, em 1994, na Viradouro. Pelo que parece, a forja era a própria mão de Teresa, mulher do chefe quilombola José Piolho que com a morte deste passou a comandar todo o quilombo. Por isso ganhou a alcunha de ‘rainha viúva’

Tereza era uma versão de saias do alagoano Zumbi dos Palmares. Ela não dava mole. Uma vez no Quariterê para sempre nele, pois as deserções eram punidas com a vida. Um desertor poderia por em risco a sobrevivência do quilombo, revelando seu posicionamento às autoridades.

Ela era a chefe política, militar e administrativa do agrupamento que contava com parlamento, conselho da rainha e um esquema de segurança que incluía troca de armamentos com os brancos. Segundo contam, a comunidade se auto-sustentava e ainda vendia tecidos e excedentes da produção agrícola fora do quilombo. 

Vinte anos resistindo ao poder colonial não era para qualquer um, muito menos para uma mulher. O Quariterê causava enormes prejuízos aos fazendeiros locais, pois a mão de obra estava afluindo com força para suas terras. Por motivos óbvios a cabeça de Tereza era muito bem vinda pelo governo local, que junto com
os donos de escravos patrocinou a bandeira chefiada por João Leme de Prado. Depois de percorrer por um mês Vila Bela, os 30 homens comandados por João Leme atacaram a comunidade de surpresa.

Muitos morreram, outros fugiram, mulheres foram violadas pelos bandeirantes e vários foram levados à cidade de Vila Bela para reconhecimento público. Depois de serem reconhecidos por seus donos foram surrados e marcados no rosto com ferro em brasa com a letra “F” de fugidos. A 'rainha viúva' foi capturada, mas preferindo a morte às humilhações que sofreria se matou ingerindo ervas venenosas.

O Quariterê devia ser algo muito especial, pois ali conviviam negros africanos, brasileiros, índios e mestiços de índios com negros numa rica fusão de culturas. Todos fugindo da exploração, dos maus tratos, do aprisionamento. Uma integração latino-americana necessária e buscada com avidez, mas até hoje rechaçada por muitos no Brasil. O samba da Viradouro destacou essa mistura.



“No seio de Mato Grosso, a festança começava/
Com o parlamento, a rainha negra governava/
Índios, caboclos e mestiços, numa civilização/
O sangue latino vem na miscigenação”

Este ano o foi sancionada a lei que elegeu o dia 25 de julho como o “Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra”. Um trecho da justificativa diz:

“No dia 25 de julho é celebrado anualmente o Dia Internacional de Luta da Mulher Negra da América Latina e do Caribe, entretanto o Brasil não tem uma data oficial de celebração da mulher negra, sendo importante termos em nosso calendário oficial de datas comemorativas um dia para homenagear a existência da mulher negra.

No entanto, é preciso criar um símbolo para a mulher negra, tal como existe o mito ZUMBI dos Palmares, as mulheres carecem de heroínas negras que reforcem o orgulho de sua raça e de sua história, de mulheres que sirvam de espelho para as batalhas cotidianas de cada mulher negra. Desta forma apresento, como forma de resgatar a memória de uma heroína negra negligenciada pela história, a homenagem à Tereza de Benguela”

Salve Tereza de Benguela!


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Clique aqui e leia a íntegra do Projeto de Lei do Senado Federal.
Fontes: Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Clóvis Moura.