Eliana Alves Cruz
Fotos: Nilce Fornasier
Na infância, a palavra ‘quilombo’, por conta da forma como eram retratados estes lugares pela escola e pela mídia, sempre me levava para as palavras fuga, esconderijo, medo, sobressalto, precariedade. Isso quando não remetia sem escalas a invasão, captura e tortura. Apenas muito mais tarde ela me conduziu para a ideia de “coragem”, “união”, “resistência” e, principalmente, que esses locais não ficaram perdidos num passado doloroso marcado pela incessante busca por liberdade, mas que existem ainda hoje e podem ser identificados em todos os espaços em que a valorização das questões do negro no Brasil é uma pauta principal.
Outro olhar no espelho
O salão de belezas Iporinchê – uma forma aportuguesada de unir as expressões iorubanas Ipo (lugar), Ori (cabeça) e N’Se (fazer) – é um quilombo moderno. Encravado no coração do bairro carioca da Tijuca, ele faz a cabeça de muita gente boa. Ninguém sai da sala no sétimo andar da galeria Marapuama, na Praça Saenz Pena, sem uma foto, sem ter sua imagem postada em todas as redes do salão. Autoestima é o lema do lugar.
Quem conhece o Rio de Janeiro sabe que a Tijuca é um bairro agradável e familiar, porém talvez seja um dos lugares cariocas onde as tensões sociais mais se verificam. Cercado por morros como Salgueiro, Boréu, Casa Branca e muitos outros, o choque entre a favela e a população de classe média é constante. Tudo isso sem contar o fato de que toma conta de quase dois quarteirões do bairro o famoso quartel da Barão de Mesquita, onde foram encarcerados militantes de peso na época da ditadura militar, entre eles, ex-presidenta Dilma Rousseff.
Um salão afro na Tijuca é resistência e é quilombo, certamente!
Estava lá dia desses quando uma nova cliente entrou ávida por saber como poderia começar a usar os cabelos naturais. Acompanhei de longe a conversa, que terminou com a frase-resumo: “Tudo é uma questão de você ter um novo olhar sobre você”.
- Toda vez que um cliente chega e senta na minha cadeira, a primeira coisa que eu faço é elogiar o cabelo.Coisas que não estão acostumados a ouvir. E nosso cabelo é muito bonito! Existem várias possibilidades de penteados. O meu trabalho é de conscientização mesmo. Eu procuro passar a confiança. Eu vejo os jovens negros a cada dia mais empoderados e isso não tem volta – disse Cássia, ao inglês The Guardian.
Cássia Marinho, a criadora do Iporinchê, já é uma daquelas personagens que marcam. Desde o início do salão, há 17 anos, sua proposta ia além das questões capilares. No início dos anos 2000, bem antes
do atual momento em que grande parte dos homens , principalmente, das mulheres negras estão buscando liberdade dos alisamentos e produtos que modificam a estrutura dos seus fios, ela já estava nesta trincheira. Saindo do forno está uma linha de produtos com a marca do salão para as crespas e cacheadas, a "Orinchê'
Na verdade, Cássia sempre quis unir a estética com a atitude, com o pensar quem realmente somos. Nas paredes, quadro do falecido ator Antônio Pompeu. Na prateleira, diversos livros. No calendário, rodas de conversas e lançamentos. O Iporinchê é uma mistura de espaço cultural e salão de belezas.
- A ideia era ter um espaço que enquanto a pessoa estivesse se embelezando, pudesse também adquirir cultura. Já fizemos várias coisas. Ciclo de debates, palestras, oficinas e já estamos no segundo ano do lançamento do nosso calendário.
Outra contagem do ano
A contagem dos 12 meses no salão começa em março. O mês dedicado no mundo todo a pensar as questões femininas foi o escolhido para dar início a contagem da autoestima. Em 2016, o calendário homenageou escritoras. Com Carolina Maria de Jesus na capa, de março de 2016 a março de 2017 clientes do salão apresentavam um livro e uma autora. Muitas clientes fiéis. Na festa de lançamento, tive a honra de sentar ao lado da premiadíssima Conceição Evaristo (prêmio Jabuti e Faz a Diferença do Globo), Sandra Almada, Lia Vieira, Helena Teodoro e de Ana Cruz.
Este ano, muitas ativistas em várias áreas deram rosto aos meses do ano ao lado de clientes da casa. Um debate sobre o ativismo no cotidiano da mulher negra fomentou um debate caloroso que ainda contou com uma “canja” das cantoras do grupo Razões Africanas, visto que a homenageada principal, a que ilustra a capa é tia Maria do Jongo da Serrinha, em Madureira.
- Se nós não falarmos de nós e não homenagearmos os nossos ícones, quem irá? Este é um momento em que podemos nos reunir, abraçar, falar. O Iporinchê é isso. É um lugar de fazer a cabeça...e o coração! – finalizou Cássia.
Iporinchê
Rua General Roca, 913 – Sala 706
Tel: 2572-2850