Bebê sírio na praia turca do resort turco de Bodrum. Foto: AFP |
O mar depositou na praia um estranho peixe. Não possuía escamas, brânquias, nadadeiras. Tinha pele,
pernas, braços, pulmões encharcados e era pequeno. Um bebê. A criança emborcada na praia
turca de Bodrum, no mês de setembro de 2015, dá conta do esquisito cardume em
que nos transformamos. Lançamo-nos ao mar em bandos fugindo da dor, da guerra e
da morte para encontrar a dor, a guerra e a
morte. O que nos motiva é a tênue e pálida esperança de trocar alguma destas
palavras por solidariedade.
Solidariedade não.
Empatia sim. Solidariedade traz sempre a sensação de algo de “cima para
baixo”. Algo como “Veja como sou magnânimo! Estou sendo solidário com a sua
tragédia, mas não faço parte dela”. Quase nunca essa palavra está bem posta.
Já a empatia nos coloca no lugar daquele corpo virado de bruços na areia turca... e
isto faz toda a diferença.
Sírios, sudaneses, nigerianos, haitianos,
europeus de um modo geral, todos os povos do planeta! O estudo dos genomas nos
diz que não existem separações entre nós, mas o mundo definitivamente não se
resume a um seminário de biologia. Estranho peixe, estranhos cardumes que
escapam do anzol de um lado do oceano para encontrarem arpões no destino final.
Viajamos a um lugar e
de lá extraímos a força temperos para nossas comidas, fumos para nossos
cinzeiros, café e chá para nossas xícaras, açúcar para nossos cafés e braços seqüestrados
para produzir nossas riquezas. O que permanece depois da nossa passagem além da
dor, da guerra, da morte e da vontade de seguir também pelo oceano e chegar
neste lugar onde estão as comidas, os cafés, chás e açúcar...? Ou ainda que nossos corpos não se desloquem, mas nossos ideais de liberdade e “solidariedade”
viajam por satélite dizendo coisas que na prática não fazemos, mas a vontade de
escapar da opressão que a falsa noção de fé ou de nação produz é tanta que do
outro lado isso se torna verdade e aí ... “Homens ao mar!”
Há quase 80 anos um
poeta escreveu e uma voz feminina imortal cantou*: “As árvores do Sul estão carregadas com um estranho fruto/ Sangue nas
folhas e sangue na raiz...”
Hoje poderíamos cantar: Os mares do mundo são habitados por um estranho peixe...
Refugiados africanos no mar Mediterrâneo. Foto: Anistia Internacional |
*O professor Abel Meeropol escreveu o poema Strange Fruits, em 1936, e Billie Holiday gravou em 1939. O poema faz alusão aos frequentes linchamentos e enforcamento de negros que ocorriam na época, nos sul dos Estados Unidos.