28 de maio … A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.”(Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus).
Enganam-se os que pensam que quilombo é apenas um local para onde os negros (ou qualquer um com ânsia de liberdade) fugiam. Penso que um quilombo é, sobretudo, um local de resistência fincado no coração da hostilidade. Uma ilha cercada de rancores, raivas e ódios por todos os lados, mas que não se entrega sem luta. Sendo assim, um quilombo pode ser um lugar e também uma pessoa.
Zumbi dos Palmares era ele próprio um quilombo, assim como Dandara, Aqualtune e todos os que ali resistiram à opressão. Desta mesma forma, Carolina Maria de Jesus, a escritora catadora de lixo que registrou seu dia-a-dia na favela paulistana do Canindé em 35 cadernos, era sozinha um quilombo inteiro.
Os cadernos de Carolina viraram o livro “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada”. Resistindo em meio ao ódio e o desprezo da São Paulo da metade do século passado (e que se mostra ainda feroz nesta segunda década do século 21), Carolina expôs todas as feridas. As dela e as da sociedade doente. Ela foi descoberta quase que por acaso, quando o jornalista Audálio Dantas, do Diário de São Paulo, fazia matéria sobre um parque na capital. Ali ele soube da catadora de lixo que era escritora e, curioso, foi conferir sua produção. Impressionado, correu para o jornal e a história daquela mulher correu a cidade.
Quarto de Despejo foi publicado em agosto de 1960. A tiragem inicial de 10 mil exemplares esgotou em três semanas. O livro foi traduzido em 13 idiomas e se tornou um best-seller na Europa e na América do Norte. A menina que cursou apenas até o segundo ano do que hoje é o ensino fundamental ficou famosa e conseguiu mudar para uma casa de tijolos no subúrbio graças ao livro, no entanto, ganhou o ódio de seus vizinhos, que no dia da mudança atiraram penicos cheios nela e nos filhos, a chamavam de prostituta negra, a acusavam de ganhar dinheiro falando da favela, mas sem repartir o dinheiro. Uma pessoa que não se encaixava. Ignorada pelos de cima, hostilizada pelos de baixo, Carolina apenas resisitia "aquilombada" em si mesma... escrevendo.
“…Eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o Jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.” (Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus).
O sucesso é efêmero, dizem. E é verdade. Apesar da fama, Carolina Maria de Jesus, nascida em 14 de março de 1914, morreu esquecida e pobre, de insuficiência respiratória em 13 de fevereiro de 1977. Em 2014 comemoramos os 100 anos desta mulher guerreira, que nos lançou um doído grito de socorro em suas obras. Apesar dos avanços ele ainda ecoa, ele ainda dói em muitas como ela, ele ainda lateja em todos os que se importam.
“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”
A fome do corpo nós estamos aos poucos vencendo. Sair do mapa mundial da fome no mundo não é pouca coisa. No entanto, a fome por verdadeira inclusão, por verdadeira justiça, por verdadeira aceitação do outro, esta ainda está bem longe de ser aplacada. Resgatar Carolina Maria de Jesus é lembrar do que não podemos nunca, jamais e em tempo algum esquecer.
Livros publicados
• Quarto de despejo (1960)
• Pedaços de fome (1963)
• Provérbios (1963)
Publicação póstuma
• Diário de Bitita (1982)
• Onde Estaes Felicidade (2014)
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
sábado, 1 de novembro de 2014
A Rainha Viúva
Se eu fosse escrever um roteiro de cinema para esta história, a primeira cena deste filme poderia mostrar um negro fujão ainda preso em suas algemas chegando exausto ao quilombo e, auxiliado pelos hábeis ferreiros que habitavam o lugar, se libertando das correntes. Na sequência estas mesmas correntes estariam na forja e seriam transformadas em armas e instrumentos de trabalho. Foi deste jeito, usando os próprios objetos que os torturavam para produzir o que os defendia e alimentava, que Tereza de Benguela reinou por duas décadas, de 1750 a 1770, no quilombo do Quariterê, em Mato Grosso, na região do Vale Guaporé, que ficava próximo à fronteira de Mato Grosso com a Bolívia.
Tereza é famosa. Provavelmente africana nascida na angolana Benguela, ela é tema de teses, verbete de livros e já desfilou na avenida Marquês de Sapucaí levada pelo talento do genial Joãozinho Trinta, em 1994, na Viradouro. Pelo que parece, a forja era a própria mão de Teresa, mulher do chefe quilombola José Piolho que com a morte deste passou a comandar todo o quilombo. Por isso ganhou a alcunha de ‘rainha viúva’.
Tereza era uma versão de saias do alagoano Zumbi dos Palmares. Ela não dava mole. Uma vez no Quariterê para sempre nele, pois as deserções eram punidas com a vida. Um desertor poderia por em risco a sobrevivência do quilombo, revelando seu posicionamento às autoridades.
Ela era a chefe política, militar e administrativa do agrupamento que contava com parlamento, conselho da rainha e um esquema de segurança que incluía troca de armamentos com os brancos. Segundo contam, a comunidade se auto-sustentava e ainda vendia tecidos e excedentes da produção agrícola fora do quilombo.
Vinte anos resistindo ao poder colonial não era para qualquer um, muito menos para uma mulher. O Quariterê causava enormes prejuízos aos fazendeiros locais, pois a mão de obra estava afluindo com força para suas terras. Por motivos óbvios a cabeça de Tereza era muito bem vinda pelo governo local, que junto com os donos de escravos patrocinou a bandeira chefiada por João Leme de Prado. Depois de percorrer por um mês Vila Bela, os 30 homens comandados por João Leme atacaram a comunidade de surpresa.
Muitos morreram, outros fugiram, mulheres foram violadas pelos bandeirantes e vários foram levados à cidade de Vila Bela para reconhecimento público. Depois de serem reconhecidos por seus donos foram surrados e marcados no rosto com ferro em brasa com a letra “F” de fugidos. A 'rainha viúva' foi capturada, mas preferindo a morte às humilhações que sofreria se matou ingerindo ervas venenosas.
O Quariterê devia ser algo muito especial, pois ali conviviam negros africanos, brasileiros, índios e mestiços de índios com negros numa rica fusão de culturas. Todos fugindo da exploração, dos maus tratos, do aprisionamento. Uma integração latino-americana necessária e buscada com avidez, mas até hoje rechaçada por muitos no Brasil. O samba da Viradouro destacou essa mistura.
“No seio de Mato Grosso, a festança começava/
Com o parlamento, a rainha negra governava/
Índios, caboclos e mestiços, numa civilização/
O sangue latino vem na miscigenação”
Este ano o foi sancionada a lei que elegeu o dia 25 de julho como o “Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra”. Um trecho da justificativa diz:
“No dia 25 de julho é celebrado anualmente o Dia Internacional de Luta da Mulher Negra da América Latina e do Caribe, entretanto o Brasil não tem uma data oficial de celebração da mulher negra, sendo importante termos em nosso calendário oficial de datas comemorativas um dia para homenagear a existência da mulher negra.
No entanto, é preciso criar um símbolo para a mulher negra, tal como existe o mito ZUMBI dos Palmares, as mulheres carecem de heroínas negras que reforcem o orgulho de sua raça e de sua história, de mulheres que sirvam de espelho para as batalhas cotidianas de cada mulher negra. Desta forma apresento, como forma de resgatar a memória de uma heroína negra negligenciada pela história, a homenagem à Tereza de Benguela”
Salve Tereza de Benguela!
Clique aqui e escute o samba da Viradouro de 1994
Clique aqui e leia a íntegra do Projeto de Lei do Senado Federal.
Fontes: Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Clóvis Moura.
Tereza é famosa. Provavelmente africana nascida na angolana Benguela, ela é tema de teses, verbete de livros e já desfilou na avenida Marquês de Sapucaí levada pelo talento do genial Joãozinho Trinta, em 1994, na Viradouro. Pelo que parece, a forja era a própria mão de Teresa, mulher do chefe quilombola José Piolho que com a morte deste passou a comandar todo o quilombo. Por isso ganhou a alcunha de ‘rainha viúva’.
Tereza era uma versão de saias do alagoano Zumbi dos Palmares. Ela não dava mole. Uma vez no Quariterê para sempre nele, pois as deserções eram punidas com a vida. Um desertor poderia por em risco a sobrevivência do quilombo, revelando seu posicionamento às autoridades.
Ela era a chefe política, militar e administrativa do agrupamento que contava com parlamento, conselho da rainha e um esquema de segurança que incluía troca de armamentos com os brancos. Segundo contam, a comunidade se auto-sustentava e ainda vendia tecidos e excedentes da produção agrícola fora do quilombo.
Vinte anos resistindo ao poder colonial não era para qualquer um, muito menos para uma mulher. O Quariterê causava enormes prejuízos aos fazendeiros locais, pois a mão de obra estava afluindo com força para suas terras. Por motivos óbvios a cabeça de Tereza era muito bem vinda pelo governo local, que junto com os donos de escravos patrocinou a bandeira chefiada por João Leme de Prado. Depois de percorrer por um mês Vila Bela, os 30 homens comandados por João Leme atacaram a comunidade de surpresa.
Muitos morreram, outros fugiram, mulheres foram violadas pelos bandeirantes e vários foram levados à cidade de Vila Bela para reconhecimento público. Depois de serem reconhecidos por seus donos foram surrados e marcados no rosto com ferro em brasa com a letra “F” de fugidos. A 'rainha viúva' foi capturada, mas preferindo a morte às humilhações que sofreria se matou ingerindo ervas venenosas.
O Quariterê devia ser algo muito especial, pois ali conviviam negros africanos, brasileiros, índios e mestiços de índios com negros numa rica fusão de culturas. Todos fugindo da exploração, dos maus tratos, do aprisionamento. Uma integração latino-americana necessária e buscada com avidez, mas até hoje rechaçada por muitos no Brasil. O samba da Viradouro destacou essa mistura.
“No seio de Mato Grosso, a festança começava/
Com o parlamento, a rainha negra governava/
Índios, caboclos e mestiços, numa civilização/
O sangue latino vem na miscigenação”
Este ano o foi sancionada a lei que elegeu o dia 25 de julho como o “Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra”. Um trecho da justificativa diz:
“No dia 25 de julho é celebrado anualmente o Dia Internacional de Luta da Mulher Negra da América Latina e do Caribe, entretanto o Brasil não tem uma data oficial de celebração da mulher negra, sendo importante termos em nosso calendário oficial de datas comemorativas um dia para homenagear a existência da mulher negra.
No entanto, é preciso criar um símbolo para a mulher negra, tal como existe o mito ZUMBI dos Palmares, as mulheres carecem de heroínas negras que reforcem o orgulho de sua raça e de sua história, de mulheres que sirvam de espelho para as batalhas cotidianas de cada mulher negra. Desta forma apresento, como forma de resgatar a memória de uma heroína negra negligenciada pela história, a homenagem à Tereza de Benguela”
Salve Tereza de Benguela!
Clique aqui e escute o samba da Viradouro de 1994
Clique aqui e leia a íntegra do Projeto de Lei do Senado Federal.
Fontes: Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Clóvis Moura.
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