Juízas Adriana Cruz, Alcioni Escobar e Karen Pinheiro |
“Meia lágrima
Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.
Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.
Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.” (1)
A igual representatividade dentro do sistema de justiça e demais espaços é essencial para sua maior legitimidade e pleno desenvolvimento de seus integrantes. A sociedade é plural e suas instituições devem refletir isso, em especial onde é exercido o poder. A diversidade em postos de decisão permite maior permeabilidade do Estado para as mudanças exigidas pelos vários segmentos que compõem a sociedade, considerando assim percepções sobre o mundo advindas de indivíduos com diferentes vivências, com diferentes perspectivas, partindo de distintos lugares sociais.
A sistemática e constante subrepresentação de determinados grupos nos órgãos do Estado é indicativa de um déficit democrático: não há igualdade efetiva de acesso a todos. No Brasil os números tornaram-se amplamente conhecidos a partir do Censo do Judiciário 2014 (dados de 2013) realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, ratificados no Censo de 2018: o Poder Judiciário brasileiro é majoritariamente branco (80,3%) . A despeito de mais da metade da população brasileira ser composta de negros e pardos , esse grupo representa apenas 18,1% da magistratura brasileira, que, ainda, conta com apenas 11 magistrados indígenas.
Há desproporção também na composição por gênero. Considerados todos os ramos do Judiciário, 62% dos juízes são homens. As mulheres negras compõem percentual de 1% a 2% por ramo da Justiça brasileira.
Diante desse quadro, realizou-se, entre os dias 10 e 12 de maio de 2017, o I Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros, com segunda edição em novembro de 2018 e uma terceira com organização em curso para este ano. Uma experiência quase indescritível para aqueles e aquelas que pela primeira vez, alguns já com longos anos de magistratura, tiveram a oportunidade de discutir sobre sua condição de cidadão e cidadã negra dentro do Judiciário e compartilhar essa experiência com os colegas não negros e negras.
Aos desavisados a vida, às vezes, presenteia com boas surpresas. Em maio de 2017, recebemos esse presente. A participação no I ENAJUN foi inicialmente motivada por um misto de curiosidade, de afinidade, mas não antevíamos a força que um encontro de biografias pautadas pela mesma conformação histórica pode impulsionar.
Sim, a clareza de uma identidade impulsiona a reflexão, impulsiona o movimento da vida em direções mais solidárias, traz a percepção do que se colocou em segundo plano, como referências culturais, para poder existir nesse lugar social, Poder Judiciário, do qual também fazemos parte.
Hoje também é nosso motor, como diz Angela Davis, “(…) a evidência da condição de incompletude das lutas planetárias por igualdade, justiça e liberdade.”
Nossa aproximação deu-se para além do contato profissional e cada uma, em seu espaço e tempo, mergulhou mais profundamente no compromisso de fomentar o diálogo sobre a discriminação racial e a reflexão sobre práticas que possam combater essa chaga que a todos adoece. Uma afinidade reforçada pelo sentimento comum de vivenciar o paradoxo de ocupar um espaço de poder e ao mesmo tempo transitar no mundo com opressões de quem está na base da pirâmide. Ainda que mitigadas e sem parâmetro de comparação com aquelas sofridas por outras mulheres negras que não dispõem das mesmas ferramentas que nós para estar no mundo, pretendemos, com nossos movimentos, modificar estruturas.
Partimos de diferentes pontos do país para uma experiência nunca antes vivida. Nunca mesmo, por ninguém mais. Ansiosas, pretendíamos olhar o espelho, saber quem éramos, entender nossas histórias, (re) descobrir nossa identidade.
A partir de então outros saberes foram criados, reciclados, ressignificados, separados, multiplicados. Assim, em movimento, como placas tectônicas, vamos as três, respeitando nossos limites e buscando potencializar nossas possibilidades. Seguimos certas de que aprendemos com nossos mais velhos e mais velhas. Parafraseando a grande Conceição Evaristo, nossa “escrevivência” no Judiciário e na vida não será para ninar o sono dos injustos.
A sistemática e constante subrepresentação de determinados grupos nos órgãos do Estado é indicativa de um déficit democrático: não há igualdade efetiva de acesso a todos. No Brasil os números tornaram-se amplamente conhecidos a partir do Censo do Judiciário 2014 (dados de 2013) realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, ratificados no Censo de 2018: o Poder Judiciário brasileiro é majoritariamente branco (80,3%) . A despeito de mais da metade da população brasileira ser composta de negros e pardos , esse grupo representa apenas 18,1% da magistratura brasileira, que, ainda, conta com apenas 11 magistrados indígenas.
Há desproporção também na composição por gênero. Considerados todos os ramos do Judiciário, 62% dos juízes são homens. As mulheres negras compõem percentual de 1% a 2% por ramo da Justiça brasileira.
Diante desse quadro, realizou-se, entre os dias 10 e 12 de maio de 2017, o I Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros, com segunda edição em novembro de 2018 e uma terceira com organização em curso para este ano. Uma experiência quase indescritível para aqueles e aquelas que pela primeira vez, alguns já com longos anos de magistratura, tiveram a oportunidade de discutir sobre sua condição de cidadão e cidadã negra dentro do Judiciário e compartilhar essa experiência com os colegas não negros e negras.
Aos desavisados a vida, às vezes, presenteia com boas surpresas. Em maio de 2017, recebemos esse presente. A participação no I ENAJUN foi inicialmente motivada por um misto de curiosidade, de afinidade, mas não antevíamos a força que um encontro de biografias pautadas pela mesma conformação histórica pode impulsionar.
Sim, a clareza de uma identidade impulsiona a reflexão, impulsiona o movimento da vida em direções mais solidárias, traz a percepção do que se colocou em segundo plano, como referências culturais, para poder existir nesse lugar social, Poder Judiciário, do qual também fazemos parte.
Hoje também é nosso motor, como diz Angela Davis, “(…) a evidência da condição de incompletude das lutas planetárias por igualdade, justiça e liberdade.”
Nossa aproximação deu-se para além do contato profissional e cada uma, em seu espaço e tempo, mergulhou mais profundamente no compromisso de fomentar o diálogo sobre a discriminação racial e a reflexão sobre práticas que possam combater essa chaga que a todos adoece. Uma afinidade reforçada pelo sentimento comum de vivenciar o paradoxo de ocupar um espaço de poder e ao mesmo tempo transitar no mundo com opressões de quem está na base da pirâmide. Ainda que mitigadas e sem parâmetro de comparação com aquelas sofridas por outras mulheres negras que não dispõem das mesmas ferramentas que nós para estar no mundo, pretendemos, com nossos movimentos, modificar estruturas.
Partimos de diferentes pontos do país para uma experiência nunca antes vivida. Nunca mesmo, por ninguém mais. Ansiosas, pretendíamos olhar o espelho, saber quem éramos, entender nossas histórias, (re) descobrir nossa identidade.
A partir de então outros saberes foram criados, reciclados, ressignificados, separados, multiplicados. Assim, em movimento, como placas tectônicas, vamos as três, respeitando nossos limites e buscando potencializar nossas possibilidades. Seguimos certas de que aprendemos com nossos mais velhos e mais velhas. Parafraseando a grande Conceição Evaristo, nossa “escrevivência” no Judiciário e na vida não será para ninar o sono dos injustos.
Adriana Alves Cruz, Juíza Federal no Rio de Janeiro,
Alcioni Escobar, Juíza Federal no Pará,
Karen Luise Souza Pinheiro, Juíza de Direito no Rio Grande do Sul,
Referências:
(1) EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. Fonte. Disponível em: < https://escolaeducacao.com.br/conceicao-evaristo/#Poemas_Conceicao_Evaristo>
Os números relativos à composição nacional da magistratura foram extraídos do censo do Judiciário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/09/49b47a6cf9185359256c22766d5076eb.pdf>
O conceito de raça que permeia a lógica deste artigo é utilizado como construção social legitimadora de distinções entre indivíduos a partir de marcas fenotípicas e não sob a perspectiva biológica, reconhecidamente inexistente entre seres humanos.
De acordo com o último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE, a população brasileira, em 2010, contava com 191 milhões de habitantes, dos quais 50, 7% se declararam como pretos e pardos (97 milhões); 2 milhões como amarelos (1,1%) e 817 mil indígenas (0,4%). Censo Demográfico 2010: características da população e dos domicílios. Disponível em http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdfAcesso em 16. maio .2017.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma Luta Constante, São Paulo: Boitempo, 2018