sábado, 11 de julho de 2015

Sobre musas, preconceito, ofensas e esportes

Rafaela, primeira brasileira ouro mundial no judô. Foto: Christian Gaul
A cada quatro anos um ciclo se repete. Chegam os Jogos Pan-Americanos, no ano seguinte os Jogos Olímpicos e com esses dois megaeventos aparecem as “musas” inspiradoras. Tomadas da mitologia grega, não por acaso também o berço do olimpismo, essas figuras filhas de Zeus e Mnemosine dão o que falar na mídia esportiva.

O curioso é que em grande parte das vezes (claro, tem gente que curte e pede pra receber esse título) as “musas atletas” se incomodam com a alcunha.  Elas treinam absurdamente, se privam de muitas coisas, abrem mão de grande parte da juventude na labuta dos treinos, atingem resultados importantes e aí ... musas.

Quatro episódios de mulheres no esporte e a relação com a estética ao longo desses anos me chamam a atenção. Tudo polêmica, tudo nitroglicerina pura. O caso das nadadoras Mariana Brochado e Rebeca Gusmão , no Pan de 2007; da judoca negra Rafaela Silva, nos Jogos Olímpicos de Londres 2012 e agora o da saltadora Ingrid Oliveira, no Pan de Toronto. 

Mariana e Rebeca eram amigas. Acompanhei de perto as duas em muitas viagens com a delegação de natação. Não vou entrar no mérito da questão que baniu Rebeca do esporte. Não é esse o tema aqui. Para mim era curioso observar que apesar de próximas, a imagem de uma refletida na mídia era o oposto da figura da outra. Enquanto Mariana (apesar de nunca ter reivindicado isso!) recebia o tratamento da tradicional “musa linda”, Rebeca era tratada com desconfiança, como a “estranha”.  Quando Mariana não conseguiu a classificação para nadar os Jogos Pan-Americanos foi um dia para não esquecer e uma hora dessas ainda bolo o roteiro de um filme.


Mariana: Finalista olímpica em Atenas 2004. Foto: Satiro Sodré
As cenas aconteceram no Parque Aquático Julio de Lamare lotado, jornalistas apinhados na zona mista. A eleita pelos veículos desde os Jogos Olímpicos de 2004 para estrelar as galerias de fotos do Pan no Rio de Janeiro estava fora da competição.  Tive que correr para ver o que acontecia no vestiário, pois ela demorava demais para sair e os microfones estavam impacientes. Encontrei Mariana muito triste, olhos vermelhos, obviamente, era uma atleta e queria estar em ação no evento histórico em sua cidade. Mas havia o subtexto da história da “musa” como um espinho machucando fundo. Ela sabia que viriam com a mensagem da “mulher bonita e incompetente”. Entristecia-se, mas também se irritava.

Enquanto isso, Rebeca, a “não musa” andava de um lado para o outro dando ânimo, dizendo para que não desistisse jamais. E nadou feito fera naquela etapa da seletiva. No dia seguinte Mariana apareceu com uniforme de comentarista de uma emissora de TV. Deu a volta por cima em 24 horas e teve que provar matando seu leão diário ao longo de anos que não era “só um rostinho bonito”. Conseguiu, mas pagou um preço alto pelo preconceito e pelo rótulo carregado mais como fardo do que qualquer outra coisa. Rebeca se envolveu num estrondoso caso de doping, foi banida, tentou se matar três vezes, hoje é treinadora e se sente no direito de também ser...  bonita! Por que não?



Rebeca Gusmão. Foto: Satiro Sodré/SSPress
Com a judoca Rafaela Silva a coisa foi, literalmente, peso-pesado na misoginia, no racismo, no ódio de classes.  Muito longe dos padrões estéticos definidos pelos meios para que recebesse a faixa e a coroa de “miss esportes”, a moça não estava nem aí para isso, pois chegou como uma das favoritas a subir no pódio mais sonhado por um atleta.  Mas não foi além das oitavas de final. Não foi poupada pelos veículos. Não foi poupada pelos leitores. Nas redes sociais a frase “lugar de macaca não é no judô” foi o mais leve que leu. 

Recordando o ocorrido, Rafaela enfrentava a húngara Hedvig Karakas e tentou golpe que inicialmente lhe rendeu um wazari, mas, depois de averiguação dos juízes, foi eliminada acusada de golpe ilegal. Também não entrarei no mérito da questão que levou a eliminação de Rafaela dos Jogos de Londres, mas é incrível como no Brasil errar parece não ser coisa de humanos e se o erro vier de uma mulher a desumanidade triplica, se vier de uma mulher negra o linchamento é elevado a enésima potência. 

Rafaela após vitória no Campeonato Mundial
O sangue de lutadora subiu. Ela foi pras redes, xingou, esperneou, foi novamente xingada por isso... Como diz por aí, a coisa foi babado. Um ano depois, em agosto de 2013, Rafaela Silva, a moça negra saída da Cidade de Deus no Rio de Janeiro, formada judoca num projeto social deu o troco conquistando o primeiro ouro feminino para o país em um Campeonato Mundial de Judô. Wazari e Ippon no preconceito. Resultado peso-pesado para a história do esporte nacional.

“Essa medalha é uma resposta para o pessoal que me criticou e que falou que lugar de macaca não era no judô, que eu tinha que caçar outra coisa para fazer. E hoje estou aqui mostrando que não depende da cor, nem do dinheiro, de nada. Depende é da garra e da vontade que você tem para ir buscar essa medalha" - desabafou na ocasião.

E agora, minha gente, como o ciclo sempre se cumpre temos uma nova história. Ingrid de Oliveira, moça do subúrbio carioca, que vem se destacando desde os 17 anos nos saltos ornamentais acabou de receber a faixa de musa brasileira do Pan de Toronto e já está no pelourinho por um salto errado, vejam bem, um único salto errado nas eliminatórias da prova e que não a tirou das finais! Pecado mortal na terra dos machos infalíveis, ela tirou fotos de maiô e seu belo corpo apareceu. Creio que não dá pra praticar saltos ornamentais com outra vestimenta... ou dá?!  As galerias de fotos nos sites e blogs e, o pior de tudo, os comentários são de arrepiar. Ironias a parte, o fato é que passou de “a gostosa” para “a gostosa incompetente”. Mariana Brochado teria muito que comentar a respeito...

Tudo isso aconteceu com Ingrid no espaço de três dias, antes mesmo da cerimônia de abertura da competição. Como os Jogos Pan-Americanos de Toronto estarão inundando a mídia até o próximo dia 26, quem saberá o que ainda vem por aí. E mais, ano que vem acontece por aqui o movimento mais importante nesta roda: Os Jogos Olímpicos.

Ingrid Oliveira, quinto lugar nos Jogos Olímpicos da Juventude. Foto: Satiro Sdoré/SS Press

Que consigamos ser citius (mais rápidos), altius (mais altos) e fortius (mais fortes) também na luta contra o preconceito.



terça-feira, 12 de maio de 2015

Vice-reitora Ana Dulce: “Quero fazer a diferença”

Ana Dulce dos Santos
Era uma vez uma moça criada no subúrbio carioca de Bangu e que se deslocava quilômetros todos os dias para freqüentar a universidade no bairro da Tijuca. Um dia, já formada em processamento de dados, foi convidada por uma conhecida que lecionava em um instituo angolano para também ensinar na instituição. Ela reuniu forças para deixar a mãe já diagnosticada com câncer aos cuidados de familiares e partir para o continente africano, para um país recém saído de uma sangrenta guerra civil, para conseguir mais recursos e custear seu tratamento. Foi assim que Ana Dulce dos Santos foi parar em Luanda em 2002, a princípio para ficar um ano, e hoje, mais de uma década depois, é vice-reitora de Assuntos Acadêmicos da Universidade Privada de Angola - UPRA.


- Nós somos independentes de Portugal há 193 anos. Angola se tornou independente há apenas 40 anos. Então é compreensível que muita coisa ainda esteja por fazer, por construir. Para mim foi difícil no início. Tive alguns choques culturais, mas hoje estou completamente adaptada. Quase todo mundo que está longe tem uma imagem da África totalmente errada, muito estereotipada. Algumas pessoas perguntavam: "Você vai pra lá?! Mas lá tem universidade?" – contou.
A Universidade Privada é uma jovem, como jovem é o país independente. Há 13 anos o instituto virou Universidade e hoje tem cerca de 3.200 alunos, 200 docentes e campus em Luanda, Cabinda, Lubango e Namibe. A instituição oferece 14 cursos: Arquitetura, Engenharia Civil, Engenharia de Informática, de Gestão, e de Sistemas Informáticos, Comunicação Social, Gestão e Contabilidade, Relações Internacionais, Turismo e Gestão Hoteleira, Ciências Farmacêuticas, Enfermagem, Fisioterapia, Odontologia e Psicologia Clínica.

Ana Dulce fez parte desse processo de transição, assim como acompanha a Angola em constante transformação, já que pôs os pés no país apenas três dias depois da morte do fundador e líder da UNITA, Jonas Savimbi.

- Eu cheguei no dia 25 e ele tinha morrido no dia 22 de fevereiro de 2002. Acompanhei bem toda a mobilização em torno disso, a assinatura dos acordos de paz... Foi muito impactante e um momento importante demais para os angolanos.
A União das Populações de Angola (UPA), o Partido Democrático de Angola (PDA), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) eram forças que atuaram no processo de independência de Portugal, em 1975, e que protagonizaram a Guerra Civil pelo poder no país que se estendeu, com intervalos, de 1975 até 2002. O conflito se transformou num terreno de batalha substituto durante a Guerra Fria e contou com a intervenção das nações diretamente ligadas a ela como Estados Unidos, União Soviética, Cuba e África do Sul.
Jonas Savimbi
O MPLA conseguiu a vitória em 2002, mas ao custo de mais de 500 mil mortes e mais de 4,28 milhões de pessoas que foram obrigadas a se deslocar dentro do território nacional. Uma crise humanitária sem precedentes no país. Em 2003, a Organização das Nações Unidas (ONU) estimou que 80% dos angolanos não tinham acesso a assistência médica básica, 60% não tinham acesso à água potável e 30% das crianças angolanas morriam antes dos cinco anos de idade, com uma expectativa de vida total nacional de menos de 40 anos de idade.

Formatura UPRA

- Eu cheguei ali naquele momento tão delicado, com tudo muito vivo ainda. Hoje vejo que é uma sociedade que está se esforçando de forma incrível para se recompor, para melhorar os índices de educação. As pessoas estão mais críticas e procurando o que é melhor. Lá temos o Ministério da Educação, que é responsável até o ensino médio; e o Ministério do Ensino Superior, que se encarrega da graduação, pós-graduação, etc. A maioria dos estudantes que se formam no Brasil ou em outros países retornam, contribuindo assim neste esforço de crescimento. O ensino por lá tem muita cooperação cubana, povo que tem excelentes relações com Angola desde a guerra de independência, e os angolanos tem um carinho especial também com o Brasil porque foi o primeiro país a reconhecê-los como nação independente. Não existem muitos docentes, então os profissionais se dividem em muitas instituições. Eu comecei o mestrado de Ciências da Educação e estou pensando em outros cursos. Temos protocolos de cooperação, intercâmbio com universidades brasileiras, como por exemplo a USP (Universidade de São Paulo) e a UFBA (Universidade Federal da Bahia) – explicou.

Como é sabido, o tráfico atlântico por séculos arrancou angolanos de suas terras para exportá-los como escravos para as Américas. Esse movimento de retorno as origens não escapou a percepção da vice-reitora.

- Quando passei no museu Nacional da Escravatura, em Luanda, senti um aperto. Uma angústia. Fica próximo ao mar, de onde partiam para um destino incerto. E hoje estou eu aqui. Todos sempre foram muito calorosos comigo. Quando minha mãe falceu e viajei para o Brasil, passei um dia inteiro recebendo ligações de Angola. Não sei se ficarei para sempre ou se retorno um dia para o Brasil, mas quero construir algo. Mesmo que seja uma pequena parte, quero ajudar a melhorar coisas que ainda são deficientes e fazer a diferença, ser uma referência.

A África não está apenas no sangue e características deixadas pelos ancestrais. Hoje Ana tem nova motivação para trabalhar e desejar com afinco que Angola e Brasil cresçam. Ela atou um laço mais forte ligando as duas nações: o filho N’Zoji David. O primeiro nome, no idioma quimbundo significa ‘sonho’. Então sonhe alto, flor da cor Ana Dulce!

Ana Dulce e N'Zoji


segunda-feira, 4 de maio de 2015

Maestrina Alba: "You have a very beautiful story to be told"



- You don't have to worry so much because you don't go very far, cause you're colored.

With this phrase a teacher told Alba Christina Souza Bomfim - professor of conducting and orchestral practice at the Federal University of Piauí - that it's wasn't necessary to take care in improving the technique to play the cello, but with her hands she now conducts orchestras around the world and more than that governs his life establishing new paradigms and proving that a woman's place is also in front of the symphony. Alba took the first place in the contest that gave her the position at the University of
Piauí and third to another proof for the Federal University of Pará.

- Piauí called me first. The funniest thing is that even though I have been in first place in the contest, many people could not see my expertise. I say we do not have to kill a lion a day, but a lion every turn! The Professional Orchestral 
Conducting is a very peculiar area in music. It is a political as well as diplomatic post because the conductor it’s a kind of spokesperson of the orchestra. When I arrived at the University, I realized that it was necessary to come abroad if I wanted to move forward. But these obstacles have driven me to seek new opportunities.



Alba was the little one of four sisters and with me and my sister made up the group of six Afro American girls who are friends since the early 80s. She grew up and built a curriculum that, had it is said in a popular expression, "rules". Bachelor's Degree in Orchestra Conducting (2001) at the Federal University of the State of Rio de Janeiro, graduated (1995) and master (2009) in Music at the University of Brasilia. Won the International Competition of Young Conductors Orchestra named Eleazar de Carvalho (2009), held in Fortaleza; integrated the suit of cellos in the Youth Symphony of the State of São Paulo, Rio de Janeiro Philharmonic, National Symphony, Brazilian Youth Symphony and the Brazilian Conservatory of Music.

Now she is in Portugal, at the University of Aveiro under the guidance of Maestro Antônio Vassallo Lourenço, in full production to complete his doctorate in Orchestra Conducting in 2018. She spoke of this area still very little explored by women and especially by afron american women in Brazil.

- At the beginning I suffered a lot. We know that in Brazil prejudice is hidden and the music world is very closed and limited. It is still a universe made of males, then the unbelief in me came from two fronts: For being afro american and woman. If I’m here today as a professor who teaches in northeastern of Brazil, with master’s degree, making a doctorate with PHD level is because I am "sticking a" very heavy system.



The conductor of an orchestra - that way conditioned in the collective imagination - is a white man, mature and with a history often that crossed generations in classical music. But Alba goes without caring about the labels. The deep and exciting sound of the cello opened the doors for the girl from Rio de Janeiro, who is daughter of a military father who moved to the capital of Brazil, Brasilia, and she had private classes at the neighborhood of her residence. After years, encouraged by his mother she applied and was selected to attend the Professional Education Center - School of Music of Brasilia.




-I thought I hadn’t "ballast" to music. My parents always encouraged me and my sisters to study music, so I had sufficient basis. In that specific time when I started piano classes we couldn't buy a piano. We are four daughters! When I joined the School of Music of Brasilia, I went through all the instruments and around of my 14 years I chose the cello. That's when I began to practice the correct way to position myself on the instrument that the teacher said that. Later I became his colleague as a professor at the same school and found that he had depreciative words with many other girls. One because she  was afro american, another because he thought it was too beautiful, another because he thought she was fat ... So it's something that goes beyond ethnicity. It has a huge sexism  in the middle - she said.



In Aveiro, Alba is researching how the orchestra conquer his audience. As it captures the attention, and then enter communication studies and marketing; as engaged in the formation of the public, which is related to the field of education; and as snatches at the time of display, thus entering in the performing arts field.

- That's my research, my intellectual production. It will be even more common have all together, all integrated, I mean, theater, music, photography ... Several artistic expressions in the same show. My practical production is in the various works that we are running to study every aspect of these. We work aimed at children, for seniors, for families. We also implement Broadway musicals, popular music. Not only is it a classic Occidental European repertoire. As a researcher I say popular music, specifically our Brazilian popular music is a huge challenge. What she once was, what is and what might be. We have very sophisticated rhythms and sounds. Yes, samba, bossa nova and many other things that we are sophisticated!



Brazil is the main goal of Alba Christina. Her plans are to return home as soon as she finishes the work in Portugal. She wants to replicate what have learned and help to form other artists.

- In music you find the speech of the age limit, heredity and other myths. Compared with Europeans, we started really later musical initiation for all social and historical issues that we already know. For those in the area opportunities appear, but how it is possible to enter? Like being in the middle? Among the many friends who started with me I count in the fingers how many continued. I feel a successful person by the issue of resilience, but now that I'm here, I wonder how I'm going further and how I will multiply my experience, pass on everything I have learned and what I’m learning. I have to be multiplying. The staff of the orchestra here is small and achieves a lot; therefore, I can replicate this structure in Teresina or anywhere small as
Sobradinho (satellite city of Brasilia), obviously respecting local differences. This is the art’s function: To go everywhere and take on new meanings - she explained.

Despite the obstacles, the suspicions, judgments and labels, Alba encourages all those who think one day walk a path like hers.

- Believe and work hard because you have a beautiful story to tell. Don’t be just in dreams, roll up your sleeves to make it happen because we are winning and that's point of no return. We looked back for the prejudice suffered only to never  forget that it exists and that is in our way, in our history, but we cannot let that paralyze us. That's the greatest legacy I want to leave for my nephews, for our children.

Silence in the audience cause the show will begin!

sábado, 2 de maio de 2015

Maestrina Alba: “Você tem uma história belíssima a ser contada”



Foto: Orquestra Filarmônica de Minas Gerais

 - Não precisa se preocupar tanto porque não vai muito longe, afinal, você é de cor.

Com esta frase um professor disse a Alba Christina Bomfim Souza - professora de regência e prática de orquestra na Universidade Federal do Piauí - que ela não precisava cuidar tanto em aprimorar a técnica para tocar o violoncelo, mas com a batuta nas mãos ela hoje rege orquestras pelo mundo e mais que isso, rege a própria vida estabelecendo novos paradigmas e provando que lugar de mulher também é na frente da sinfônica. Alba passou em primeiro lugar no concurso que a fez professora da Universidade do Piauí e em terceiro para outro concurso para a Universidade Federal do Pará.


- O Piauí me chamou primeiro. Engraçado que mesmo tendo sido a primeira colocada no concurso, muita gente não conseguia enxergar a minha competência técnica. Eu digo que a gente não tem que matar um leão por dia, mas um leão a cada turno! . A regência é uma área muito peculiar dentro da música. É um cargo político e também diplomático porque o regente acaba sendo uma espécie de porta voz da orquestra. Assim que cheguei percebi que se eu quisesse avançar teria que vir para o exterior. Mas esses obstáculos me impulsionaram a buscar novas oportunidades.

Foto: Filarmônica das Beiras/POR

Alba era a caçulinha de quatro irmãs, que comigo e minha irmã formava o grupo de seis meninas negras amigas desde o início dos anos 80. Ela cresceu e hoje tem um currículo que, como se diz no popular, “bota-pra-quebrar”. Bacharel em Direção (2001) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, licenciada (1995) e mestre (2009) em Música pela Universidade de Brasília. Venceu o Concurso Internacional de Jovens Regentes de Orquestra Eleazar de Carvalho de 2009, realizado em Fortaleza, integrou o naipe de violoncelos da Sinfónica Jovem do Estado de São Paulo, Filarmônica do Rio de Janeiro, Sinfônica Nacional, Sinfônica Brasileira e Jovem e Camerata do Conservatório Brasileiro de Música.

Atualmente ela está e
m Portugal, na Universidade de Aveiro sob a orientação do Maestro Antônio Vassalo Lourenço, em plena produção para concluir seu doutorado, do qual sairá PHD em 2018, em Direção de Orquestra. Ela falou desta área ainda muito pouco explorada pelas mulheres e principalmente pelas mulheres negras no Brasil.

- No início eu sofri bastante. A gente sabe que no Brasil o preconceito é velado e o mundo da música é muito fechado e restrito. Ainda é um universo muito masculino, então a descrença comigo vinha de duas frentes, ou seja, por eu ser negra e por ser mulher. Se hoje estou aqui professora que leciona no nordeste, com mestrado, fazendo um doutorado diferenciado do qual vou sair PHD é porque estou “furando” um esquema pesadíssimo.



Foto:Astoria Symphony/Nova York
O regente de uma orquestra – assim nos condicionou o imaginário coletivo – é um homem branco, maduro e com uma história, muitas vezes que atravessou gerações, na música clássica.  Mas Alba vai imprimindo sua marca sem se importar com os rótulos. O som profundo e emocionante do violoncelo abriu as portas da carreira para a menina carioca, filha de militar que foi morar em Brasília e estudava piano na escola da quadra. Depois de anos na escolinha, incentivada pela mãe se inscreveu e foi sorteada para cursar o Centro de Educação Profissional – Escola de Música de Brasília.

- Eu achava que não tinha “lastro” para música. Meus pais sempre incentivaram a mim e as minhas irmãs a estudar música, então eu tinha base sim. Éramos uma família como muitas de classe média, que embora tenha algumas coisas, faltam outras e não tínhamos condição de ter um piano em casa. Somos quatro filhas! Eu estudava piano na escola da quadra. Quando entrei para a Escola de Música de Brasília, passei por todos os instrumentos e lá pelos 14 anos escolhi o violoncelo. Foi quando comecei a praticar a forma correta de me posicionar no instrumento que o professor disse aquilo. Mais tarde eu me tornei colega dele como professora da mesma escola e descobri que ele teve palavras depreciativas com muitas outras meninas. Uma porque era negra, outra porque ele achava que era bonita demais, outra porque era gordinha... Então é algo que vai além da questão étnica. Tem um machismo enorme no meio – contou.

Arquivo Pessoal/ Escola de Música de Brasília

Em Aveiro, Alba está pesquisando como a orquestra conquista sua plateia. Como ela capta a atenção, e aí entram estudos de comunicação e marketing; como atua na formação do público, o que está relacionado com a área de educação; e como arrebata no momento da exibição, entrando assim no terreno das artes cênicas.

- Essa é a minha pesquisa, minha produção intelectual. Cada vez mais teremos tudo junto, tudo integrado, ou seja, teatro, música, fotografia... Várias expressões artísticas num mesmo espetáculo. A minha produção prática são as diversas obras que estamos executando para estudar cada aspecto desses. Temos trabalhos voltados para crianças, para idosos, para as famílias. Executamos também musicais da Broadway, músicas populares. Não se trata apenas de um repertório europeu ocidental clássico. Como pesquisadora eu digo que música popular, especificamente a nossa música popular brasileira é um enorme desafio. O que ela já foi, o que é e o que pode vir a ser. Temos ritmos e sons muito sofisticados. Sim, o samba, a bossa nova e muitas outras coisas que temos são sofisticadas!

O Brasil é o objetivo de Alba Christina. Seus planos são retornar para casa assim que concluir o trabalho em Portugal. Quer replicar o que aprendeu e ajudar a formar outras artistas.

Foto: Filarmônica das Beiras/POR
- Na música você encontra o discurso do limite de idade, da hereditariedade e outros mitos. Comparados aos europeus, nós começamos realmente mais tarde a iniciação musical por todas as questões sociais e históricas que já sabemos. Para quem está no meio às oportunidades aparecem, mas como entrar? Como estar no meio? Entre os vários amigos que começaram comigo conto nos dedos quantos continuaram. Me sinto realizada pela questão da superação, mas agora que estou aqui, me pergunto como vou mais longe e como vou multiplicar a minha experiência, repassar tudo o que aprendi e estou aprendendo. Tenho que ser multiplicadora. A equipe da orquestra aqui é super pequena e consegue muito, ou seja, posso replicar essa estrutura em Teresina ou em qualquer lugar pequeno como Sobradinho (cidade satélite de Brasília), obviamente respeitando as diferenças locais. Essa é a função da arte. É ir a todos os lugares e levar novos significados – explicou.

Apesar dos obstáculos, das desconfianças, julgamentos e rótulos, Alba incentiva a todos os que pensam um dia trilhar um caminho parecido ao seu.

- Acredite e trabalhe para concretizar, pois você tem uma história belíssima a ser contada. Não fique apenas nos sonhos, arregace as mangas para fazer acontecer, pois estamos vencendo e esse é um caminho sem volta. Olhamos para trás e para os preconceitos sofridos para não esquecer que isso existe e que está em nosso caminho, na nossa história, mas não podemos deixar que nos paralisem. Esse é maior legado que quero deixar para os meus sobrinhos, para as nossas crianças.

Silêncio na plateia, pois o espetáculo vai começar!