Etiene Medeiros no Mundial de Kazan (Satiro Sodré/SSPress)
Quando o cronômetro parou de rodar nas
provas de natação de 50 m costas e 100 m peito do Mundial dos Esportes
Aquáticos, encerrado no domingo (9), em Kazan, na Rússia, o mundo viu
pela primeira vez uma brasileira e uma jamaicana no pódio da principal
competição de natação depois da Olimpíada. Para além do novo espaço que
abriram para o esporte feminino em seus países, outro fato, pouco
citado, as une: são negras. Atletas raras em competições de alto nível
da natação mundial. E por que isso seria relevante?
Uma rápida enquete com treinadores e atletas à beira das magníficas
piscinas construídas no meio do gramado do estádio de futebol Kazan
Rubin deu conta de que o tema é quente.
Matheus Santana, recordista mundial e campeão olímpico júnior em
2014, disse: “Na água todo mundo é igual”. Matheus falava da humanidade
comum a todos, claro, mas a performance que faz um bater em primeiro
lugar, e outro nem passar para a fase semifinal está condicionada a
fatores no seco.
Dentro d’água tudo pode ser igual, mas fora certamente não, pois a
natação é um dos esportes em que a tecnologia é a nota de corte. Ela dá o
tom desde os trajes usados na hora da competição até a análise do
movimento no pós-prova, passando por todo o leque de apoio
multidisciplinar para que um atleta consiga colocar para fora todo o seu
potencial e figurar entre os melhores do mundo. Afinal, o meio aquático
não é o nosso habitat natural.
Não é preciso nenhuma pesquisa elaborada pra comprovar o que os olhos
facilmente atestam. São muito poucos os atletas negros que se destacam
na natação. Algumas teses falam que a estrutura óssea mais pesada, a
tendência a desenvolver mais músculos do que gordura, enfim, o biótipo
joga contra, ou melhor, afunda.
Muitos treinadores não têm uma opinião totalmente formada devido à
carência de pesquisas sobre o tema, mas entre os atletas consultados a
resposta é uma só: o problema é social e cultural.
Etiene Medeiros, 24 anos, a menina pernambucana que roda os braços para trás na água e vai colecionando títulos pelo
mundo tem o pioneirismo no destino. Foi a primeira mulher brasileira
medalhista nos Mundiais júnior, em piscinas curta e longa. Primeira
recordista mundial. Também foi a primeira brasileira a ganhar o ouro da
natação dos Jogos Pan-Americanos. É mulher, é negra e nordestina.
“Já pensei muito sobre isso. É claro que está relacionado com o
acesso ao esporte muito mais do que qualquer outra coisa. Muita gente
diz que isso [racismo] não existe, mas é claro que pesa. Natação é um
esporte caro e para praticar é preciso ter acesso a lugares aos quais a
população negra tem dificuldade de chegar. Tem muita coisa aí nesta
questão. Minha mãe é negra e meu pai é branco, mas sempre fui muito
conscientizada pela minha família, que me apoia e me estimula em tudo a
chegar o mais longe possível. Para nós, essa base familiar é tudo”,
falou Etiene, que tem tatuado no ombro esquerdo a palavra “ohana”, que
significa, entre outras coisas, família, em havaiano.
Alia Atkinson, medalhista no Mundial de Kazan (Foto: Chan-fan)
“Brasil tem o racismo mais sem vergonha de todos”
A jamaicana Alia Atkinsons está nas raias pelo mundo há mais tempo do
que Etiene. A atleta de 26 anos carregou a bandeira do país nos Jogos
Pan-Americanos do Rio, em 2007, onde superou o recorde jamaicano dos 100
m borboleta.
Na Olimpíada de Pequim, em 2008, ficou na 25ª posição, mas a partir
dos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, em 2011, ela começou a subir ao
pódio e, desde então, já tem na coleção uma medalha de ouro e três de
prata em Mundiais em piscina curta, duas medalhas de prata em Jogos
Pan-Americanos e agora, uma prata e um bronze no Mundial em piscina
longa.
“Acho que é uma questão de popularização, de mídia. Quanto mais
popular o esporte for, mais gente vai praticar e aí surgirão os
talentos. Sei que existem teorias, mas particularmente não acredito em
nenhuma delas.”
Curiosamente, a Jamaica de Alia foi o destino de Nicolas Oliveira
logo após os Jogos Olímpicos de Londres, onde não passou das
eliminatórias dos 100 m livre. Disposto a relaxar e repensar a vida, o
nadador mineiro, que já esteve em cinco Mundiais e coleciona cinco
medalhas de ouro e uma de prata em provas de revezamento dos Jogos
Pan-Americanos, arrumou as mochilas e rumou para a terra de Bob Marley
onde passou três, segundo ele, inesquecíveis meses. Ficou tão fascinado
que nas próximas férias disse que é para lá que pretende seguir.
O nadador Nicolas Oliveira (Foto: Satiro Sodré/SSPress)
“Um lugar extraordinário. Brinquei com as crianças no mar e fiquei
impressionado com a facilidade com que aprendiam e com que repetiam o
que eu fazia. Oportunidade é tudo”, observou Nicolas.
Embora aparente sempre serenidade, Nicolas Nilo não tem meias palavras para expressar suas opiniões.
“O Brasil tem o racismo mais safado, mais sem vergonha de todos. É
aquele escondidinho, disfarçado de outras coisas, camuflado. Por isso
muita gente jura que não existe. O esporte não está fora disto. Ele
sofre as mesmas coisas. Não é fácil chegar aos locais onde se pratica a
natação num nível mais profissional. Não foi tão simples para mim, um
cara da zona norte de Belo Horizonte, quando entrei no Minas Tênis, um
clube da zona sul e super tradicional. Nunca passei por nenhuma situação
explícita, mas acontecia lá o mesmo que acontece em toda a sociedade
brasileira, ou seja, situações veladas, por vezes sutis, mas que tem um
nome só”, disse.
“Tem quem diga que não sou negro. Uma vez vi uma entrevista do Mano
Brown e me identifiquei porque ele falava da dificuldade que enfrentam
as pessoas ‘misturadas’, porque o racismo no Brasil se dá pela cor da
pele. Então a gente fica ali, no limbo”, brincou. “Mas somos negros e
ponto final. Vivi dez anos nos Estados Unidos [Arizona] e uma coisa eu
admiro na cultura deles é que as coisas são muito mais claras, e as
pessoas se posicionam com muito mais convicção. Isso nos faz falta.
Acesso e oportunidade são a chave.”
Caminhando calmamente pelo deck da piscina do Mundial de Kazan estava
Anthony Nesty, o lendário nadador trinitino naturalizado surinamês
que foi o segundo atleta negro na história a ganhar uma medalha
olímpica na natação -antes dele, Enith Brighita, nascida em Curaçao e
nadando pela Holanda, ganhou duas de bronze nos Jogos de Montréal-1976.
Nos Jogos de Seul, em 1988, o americano Matt Biondi, favoritíssimo ao
ouro, nem acreditou quando olhou o placar e viu seu nome em segundo.
Nesty o derrotou por um centésimo nos 100 m borboleta. Em
Barcelona-1992, ele voltou para levar o bronze na mesma prova. Nesty
hoje é treinador e acredita numa combinação de fatores, mas nenhum
ligado às características físicas.
O surinamês Anthony Nesty (Foto: Olympics.org)
“Acredito que é uma junção de fatores sociais e culturais. É um
esporte muito caro comparando com outros como futebol, por exemplo, e a
população negra está nas camadas mais pobres. Existem outras questões
também como mídia. Por exemplo, se você pega uma menino de 11 anos no
Brasil, o que ele mais vê? Futebol! Nos Estados Unidos, o que temos?
Beisebol, basquete, golfe… A popularidade exerce um fascínio óbvio em
todas as camadas da sociedade. Biótipo? Não creio”, analisou.
Matheus Santana, campeão olímpico júnior e recordista mundial da
categoria começa agora a trilhar as competições absolutas mais
“pesadas”. Estreou nos Jogos Pan-Americanos de Toronto, onde levou o
ouro no time do revezamento 4×100 m livre. Seu técnico, Marcio Latuff,
falou dos cuidados que tem com ele.
“Falando do Matheus, a gente tem que ter um cuidado muito grande,
pois sabemos que os negros têm uma porção muscular maior do que a de
gordura e é importante o atleta ter um pouco de gordura para que ele
possa flutuar mais. No caso do Matheus, além disso, ele é portador de
diabetes e a medicação também propicia o desenvolvimento muscular. É
preciso atenção pra manter o equilíbrio, embora os velocistas sejam mais
‘secos’ que os nadadores de fundo. Mas tem o outro lado também, pois os
talentos precisam de oportunidades para surgir, como foi o caso do
Matheus, filho de funcionários dos Correios, que apareceu numa
competição da empresa. Ele nasceu com esse talento, esse lado ‘peixe’.
Se todo mundo tiver a chance, muitos podem chegar onde ele está”, disse.
Matheus não crê que os músculos sejam obstáculo. “É uma
característica, mas não é uma coisa que impeça. Acho que é uma questão
mais social mesmo. Aqui em Kazan a gente viu o Metella [Mehdy Metella]
que abriu com um tempo excelente o revezamento francês que foi ouro, a
jamaicana [Alia Atkinson] do estilo peito… Com o tempo isso vem mudando.
Acho que falta incentivo em alguns países. Todo mundo tem que fazer a
mesma força pra chegar na frente. É nesse sentido que digo que dentro
d’água todo mundo é igual”, afirmou.
Natação para todos
O relator especial da ONU para as formas contemporâneas de racismo,
Mutuma Ruteere, em novembro de 2014, conclamou todos os países
representados na Assembleia Geral a tomar as providências para explorar o
potencial dos esportes para deslegitimar discursos de superioridade
racial e para disseminar mensagens de igualdade e de não-discriminação.
As principais agendas da ONU para o esporte falam de auxílio para a
redução da pobreza, educação universal, igualdade de gêneros,
sustentabilidade ambiental, inclusão e promoção da paz.
A Federação Internacional de Natação (Fina) mergulhou de cabeça na
proposta, colocando provas mistas em todas as disciplinas e criando um
programa chamado “Swimming for all – Swimming for life”, comandado pela
entidade junto a pesos-pesados como o Escritório das Nações Unidas para o
Esporte para Desenvolvimento e Paz (UNOSDP), a Unesco, a Organização
Mundial de Saúde (OMS), o Unicef e o Comitê Olímpico Internacional
(COI).
O alemão Wilfried Lemke, conselheiro especial para o desporto, o
desenvolvimento e paz do secretário-geral da ONU, Ban ki-Moon, foi à
Convenção Mundial da Fina, em 2014. Todos estão atentos à necessidade de
fomentar a natação nas nações em desenvolvimento, pois, para além das
questões étnicas e competitivas, existe o fato inegável de que em um
mundo em constantes transformações climáticas é necessário saber nadar.
“De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o afogamento é a
terceira principal causa de morte e lesões não intencionais em todo o
mundo. O afogamento é responsável por um número estimado de 359 mil
mortes a cada ano”, disse.
No próximo grande evento televisionado, pense que além dos minutos,
segundos e centésimos, muita coisa corre na superfície da água de cada
competição de natação.
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Matheus Santana (Foto: Satiro Sodré/SS Press) |
Publicado originalmente no http://esportefinal.cartacapital.com.br/racismo-natacao-negros/