quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Estranho peixe




Bebê sírio na praia turca do resort turco de Bodrum. Foto: AFP
O mar depositou na praia um estranho peixe. Não possuía escamas, brânquias, nadadeiras. Tinha pele, pernas, braços, pulmões encharcados e era pequeno. Um bebê. A criança emborcada na praia turca de Bodrum, no mês de setembro de 2015, dá conta do esquisito cardume em que nos transformamos. Lançamo-nos ao mar em bandos fugindo da dor, da guerra e da morte para encontrar a dor, a guerra e a morte. O que nos motiva é a tênue e pálida esperança de trocar alguma destas palavras por solidariedade.

Solidariedade não. Empatia sim. Solidariedade traz sempre a sensação de algo de “cima para baixo”. Algo como “Veja como sou magnânimo! Estou sendo solidário com a sua tragédia, mas não faço parte dela”. Quase nunca essa palavra está bem posta. Já a empatia nos coloca no lugar daquele corpo virado de bruços na areia turca... e isto faz toda a diferença.

Sírios, sudaneses, nigerianos, haitianos, europeus de um modo geral, todos os povos do planeta! O estudo dos genomas nos diz que não existem separações entre nós, mas o mundo definitivamente não se resume a um seminário de biologia. Estranho peixe, estranhos cardumes que escapam do anzol de um lado do oceano para encontrarem arpões no destino final.

Viajamos a um lugar e de lá extraímos a força temperos para nossas comidas, fumos para nossos cinzeiros, café e chá para nossas xícaras, açúcar para nossos cafés e braços seqüestrados para produzir nossas riquezas. O que permanece depois da nossa passagem além da dor, da guerra, da morte e da vontade de seguir também pelo oceano e chegar neste lugar onde estão as comidas, os cafés, chás e açúcar...?  Ou ainda que nossos corpos não se desloquem, mas nossos ideais de liberdade e “solidariedade” viajam por satélite dizendo coisas que na prática não fazemos, mas a vontade de escapar da opressão que a falsa noção de fé ou de nação produz é tanta que do outro lado isso se torna verdade e aí ... “Homens ao mar!”

Há quase 80 anos um poeta escreveu e uma voz feminina imortal cantou*: “As árvores do Sul estão carregadas com um estranho fruto/ Sangue nas folhas e sangue na raiz...”

Hoje poderíamos cantar: Os mares do mundo são habitados por um estranho peixe...

Refugiados africanos no mar Mediterrâneo. Foto: Anistia Internacional


*O professor Abel Meeropol escreveu o poema Strange Fruits, em 1936, e Billie Holiday gravou em 1939. O poema faz alusão aos frequentes linchamentos e enforcamento de negros que ocorriam na época,  nos sul dos Estados Unidos.

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