Cinco vencedores do Prêmio Oliveira Silveira. Foto: Ana Lúcia Zanotelli |
Há cerca de cinco anos eu decidi
realizar um sonho da vida toda: contar a trajetória da minha família em um
livro. Depois de uma pesquisa densa, muito caos, dor, mas, sobretudo muito
prazer, consegui colocar o ponto final em ‘Água de Barrela’, uma história que
começa na atual Nigéria, vem para a Bahia, o Rio de Janeiro e atravessa três séculos. Um resgate, uma catarse, um desabafo, um alívio e um
pedido de benção para os meus mais velhos, pois quem não sabe de onde veio não
acerta para onde vai.
Assim que terminei, quase que num fôlego só inscrevi o texto no concurso
literário Prêmio Oliveira Silveira - o primeiro da Fundação Palmares - e para a minha
surpresa, ganhei em primeiro lugar.
Decidi escrever sobre a nossa vida
real em um romance, quando percebi que ser negro no Brasil implicava em
esquecimento e invisibilidade, mais que aos olhos dos outros, diante do nosso próprio espelho de vida
humana. O passado é um espinho encravado em nossa carne. Um incômodo. Não no
sentido bíblico de tentação, mas no de angústia pelo desconhecimento das
origens que estão impressas na pele e correndo nas veias.
Mais do que os arquivos sobre escravidão queimados nos tempos de Rui Barbosa, o país ― o branco e o
negro ― incinerou deliberadamente o dia a dia miúdo dos que aqui foram
escravizados. O Brasil dos brancos foi dominado pelo desejo sempre presente de
“embranquecer” a população, vontade traduzida em sucessivas orientações
políticas de estado.
Como dois exemplos históricos, entre muitos, lembramos a fala de
ninguém menos do que a do então Ministro das Relações Exteriores do Brasil,
Oswaldo Aranha, em entrevista para a antropóloga Ruth Landes, em 1938,
explicando o Estado Novo, gerado pela Revolução de 1930: "(...) o nosso
atraso político, que tornou essa ditadura necessária, se explica perfeitamente
pelo nosso sangue negro. Infelizmente. Por isso, estamos tentando expurgar esse
sangue, construindo uma nação para todos, limpando a raça brasileira".
Depois, disposições oficiais, como as do Decreto-Lei nº 7.967, de
18/09/1945 (vigente até ser revogado apenas em 19/08/1980, pela Lei n° 6.815),
cujo artigo 2°
tinha o teor seguinte: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade
de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua
ascendência europeia (...)”.
O Brasil dos negros esqueceu-se de si
mesmo, por uma questão muito
simples: a escravidão era e ― apesar da evolução da sensibilidade humanista ou
das ações afirmativas de todo gênero para a preservação da cultura e da
ancestralidade negras ― continua sendo um duríssimo estigma.
O ano de 2015 na vida nacional em
diversos momentos se arrastou feito réptil que vai deixando uma peçonha no
caminho. O veneno da violência, da intolerância e do retrocesso. No entanto,
como diriam nossas avós, não há bem que sempre dure ou mal que nunca se acabe. Esse
quinze terminou nos dizendo: tudo teve um motivo.
O esforço pelo resgate da nossa
identidade, a meu ver, foi um dos pontos altos destes 12 meses conturbados.
Todo o movimento deflagrado pelas mulheres brasileiras em 2015 já é motivo de
orgulho para todas nós que somos conscientes do que é ser mulher no Brasil, no
mundo, hoje e sempre. O que dizer, por exemplo, da Marcha das Mulheres Negras?
Nenhuma palavra possui força suficiente para descrevê-la.
Meu livro a Fundação Palmares irá
publicar em 2016 e, posteriormente, alguma editora. Agradeço à presidenta Cida
Abreu, a todos os membros da Fundação e ao corpo de jurados composto por
profissionais do mais alto gabarito, pela oportunidade que nos deram de tirar
nossa produção literária das gavetas. Em futuro próximo espero que muita gente
possa ler e se emocionar. E que muita gente possa ser incentivada a também
escrever. Qualquer lembrança é resgate. Devemos contar. Devemos falar. Não
podemos deixar passar. Nossa hora é agora.
Personagens de 'Água de Barrela'. Minha bisavó, Damiana, e minha avó, Celina. Aniversário de 100 anos de Damiana, em 1988. |
Foto de acervo familiar, proibida reprodução sem autorização