domingo, 19 de outubro de 2014

O bendito fruto do nosso ventre...livre!

Prisão de ventre para mim durante muito tempo foi apenas um problema de saúde na contramão da natureza, pois um corpo saudável precisa expelir o que não lhe serve. No entanto, para o Brasil, ao longo de 371 anos, um “ventre preso” era muito mais que isso.  Aqui valia a norma do partus ventrem sequitur. Traduzindo: O filho do ventre escravo, escravo seria. A mulher era levada a enxergar o ser que lhe preenchia o ventre como algo que nunca seria seu. A Flor da Cor de hoje na verdade é ele, o nosso útero.

Quando estudamos isso nos bancos escolares nem de longe nos contam o alcance desse tema. Um “ventre preso” tirava o direito da mãe sobre o filho. Dentro dele havia um feto já condenado aos caprichos, crueldades e vontades do seu senhor. Podia estar negociado e sentenciado a viver muito longe dos seus sem ao menos ter chorado pela primeira vez. Ele, o feto, já poderia fazer parte dos bens de algum defunto para ser partilhado entre seus descendentes. Ela, a cria, era parte de um rebanho, de cabeças de gado humano que só tinha um direito: Obedecer bovinamente, resignadamente.

O que fazer para não expor a futura prole à tão cruel sina? "Não vamos deixar que nasçam!" - Muitas pensavam - "
Vamos aborta-los!" - muitas faziam.  E a mortandade beirava os 80%. Qualquer semelhança com tempos atuais não é mera coincidência, pois não estamos muito distantes dos bárbaros tempos da falta de assistência à mulher no Brasil. 

E então, depois de muita pressão de abolicionistas e da comunidade internacional, no dia 28 de setembro de 1871 promulgam a Lei Rio Branco, que foi popularizada como Lei do Ventre Livre. Um texto com 10 artigos que logo de cara disse a que veio. Está lá no primeiro parágrafo do primeiro artigo, que as crianças ficariam em poder e sob responsabilidade dos senhores da mãe até os oito anos completos, quando os donos teriam a opção de receber uma indenização do Estado ou de utilizar os serviços do menor até os 21 anos!

Se você não tem oito anos seguirá meu raciocínio. Assim que se equilibrava 
sobre as duas pernas, o moleque ficava com o dono trabalhando feito um burrico de carga. Quando completava oito, mas já estropiado pela exploração do trabalho infantil, o senhor obviamente dispensava a tal indenização (600 mil réis), que era muito menos do que o escravo poderia valer e produzir como adolescente e jovem. E quando o nosso “ingênuo” (nome dado aos nascidos do ventre livre) completava 22 anos, que condições tinha ele para gozar de sua liberdade?

Mesmo com condições tão favoráveis aos senhores, as formas de burlar essa lei eram tantas e tão criativas, que não cabem aqui neste singelo texto. Basta saber que o Diário Oficial da Bahia (vejam bem, um órgão oficial!) publicou em 4 de junho de 1887, um anúncio de leilão  numa propriedade escrava nos seguintes termos:

“Alberto, 10 anos, por um conto de réis; Vicente, 13 anos, por seiscentos mil-réis; Félix, 14 anos, por oitocentos mil-réis...” E por aí vai. Dezesseis anos depois da promulgação da lei as crianças ainda eram leiloadas acintosamente  e impunemente em veículo oficial da província.

Se você de fato não tem oito anos vai seguir este meu outro raciocínio: A tão decantada mistura entre brancos e negros no Brasil nasceu da violência sexual. Obviamente que rolou sexo consentido, mas a maioria, a esmagadora maioria das escravas era sistematicamente estuprada em senzalas por senhores, seus filhos e toda sorte de homens brancos que tivessem poder sobre elas.

Experimentasse a “negrinha” não ceder aos desejos do “inhô” e não preciso descrever o que ocorria. Dito isto, o feto escravo não raro era fruto do seu algoz.

Quanto às mães, cabia a elas trabalhar para que os seus não sofressem a mesma prisão que elas. E os casos são inúmeros de mulheres que abriram mão da própria liberdade para nos raros momentos de folga juntar recursos que de verdade libertassem o fruto de seus ventres.

Perguntas: Não é isso o que continuam fazendo tantas mães que sozinhas sustentam seus lares pelas periferias do Brasil a fora? 

Quando vozes se levantam para defender com tanta virulência a redução da maioridade penal baseados nos 1,9% dos crimes que são cometidos por menores no Brasil, não estão previamente condenando crianças pobres a viver na mira das forças de repressão mais cruéis? E, em virtude do nosso processo histórico, não seriam essas crianças em sua esmagadora maioria negras? Não estão levando suas mães a questionar a utilidade e validade de suas vidas antes mesmo de virem ao mundo? E na verdade, não seriam esses os reais motivos para defenderem tais coisas?

Quando gritam para estimular o Estado a não tratar o aborto como questão de saúde pública e para não reconhecer direitos básicos conquistados por setores da população que até seus úteros tiveram negociados ao longo de meio milênio de história, a pergunta que fica é: O ventre é realmente livre no Brasil de 2014?

O útero negro é um herói sobrevivente do silencioso, secular e cruel racismo brasileiro.

sábado, 11 de outubro de 2014

Rosa Egipcíaca: A flor do Rio de Janeiro

Esta história é muito louca (alguns diriam no sentido literal!) e tão profunda em seus muitos significados que eu não teria jamais a pretensão de esgotá-la, como, aliás, não tenho com nenhuma outra. Aqui está apenas o meu olhar. E esse olho hoje bateu na negra que em 1725 desembarcou de um tumbeiro ainda criança no porto do Rio de Janeiro. Além de escrava, ela foi prostituta, beata, embusteira (o famoso 171 na gíria de hoje), aprendiz de santa, escritora e, finalmente, mais uma simples mulher negra que sofreu descrédito e anos de castigos físicos violentíssimos.

Rosa é autora de ‘Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas’, o livro mais antigo escrito por uma mulher negra no Brasil. E não fosse por mais nada, por este fato lhe rendo minhas homenagens.

Acontece que Rosa saiu da Costa da Mina com mais ou menos seis anos e ficou no Rio até seus 14 anos, quando foi levada para Minas Gerais pelas mãos do frei José da Santa Rita Durão, aquele mesmo poeta que escreveu ‘Caramuru’ e é considerado um dos precursores do indianismo no Brasil. Em Minas, Rosa se tornou prostituta e pelo visto obteve sucesso na carreira, pois aos 30 anos resolveu vender todas as jóias e roupas conquistadas e doá-las aos pobres. Fez isso depois que foi acometida por uma estranha doença que fazia seu rosto inchar, sentir dores e tumores no estômago. Tudo isso junto com uma coisa que, mais uma vez, faz minha imaginação voar. 

Pensem numa mulher negra, no século 18, prostituta, que começa a ter visões místicas com Nossa Senhora da Conceição? A força das visões tirou Rosa da “profissão mais antiga do mundo”, fazendo dela uma ex-prostituta (sim, isto existe), para torná-la beata, frequentadora assídua dos sermões, missas e ofícios, onde conheceu o padre Francisco Gonçalves Lopes, conhecido pela singela alcunha de ‘Xota-Diabos’. Ele era um exorcista e Rosa se dizia possuída por sete demônios. 
Nossa Senhora da Conceição,
pelo pintor espanhol
Estéban Murillo.


Na primeira seção de exorcismo, segundo o que está no livro de Luiz Mott (ver referências no final) ela caiu desmaiada “partindo a cabeça na pedra debaixo do altar de São Benedito". Mas não poderia ficar só nisso, não é mesmo? Rosa foi presa e supliciada no pelourinho da cidade de Mariana. Os castigos foram tão “leves”, que deixaram seu lado direito todo paralisado para o resto da vida, mas não parou por aí. Após ser levada ao Bispo e não passar em testes que incluíam resistir por cinco minutos à chama de uma vela foi considerada embusteira e passou a ser chamada de feiticeira. 

Ajudada pelo padre Francisco (estou resistindo em chamá-lo de Padre Xota), ela fugiu para o Rio de Janeiro onde confessou ter visões de Nossa Senhora da Conceição, no céu, recebendo revelações de uma fonte de água milagrosa. Pronto. Os franciscanos se impressionaram com os relatos, ela passou a frequentar o Convento de Santo Antônio (ali mesmo, no Largo da Carioca) e eles passaram a chamá-la de “a Flor do Rio de Janeiro”... mais a vida ensinaria que nem tudo são flores. Já veremos.
Os franciscanos pensaram numa coisa que hoje poderíamos chamar de ‘marketing religioso’, pois a igreja Católica estava procurando um modelo de santidade para a população negra e quem sabe Rosa não seria e santa que traria mais fiéis entre os pretos? Deram-lhe um nome pomposo – ‘Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cuz’ – que remetia a Santa Maria Egípcia, que também teria sido prostituta.

Rosa tratou de aproveitar seu momento de glória. Por visão celestial, Nossa Senhora “obrigou-a” a aprender a ler e escrever, o que ela fez rapidamente e pôs mãos à obra para por no papel as 250 páginas de suas visões. Passou a ser chamada 'Madre Rosa' e também por inspiração divina fundou o Recolhimento Nossa Senhora do Parto, que abrigava “moças desencaminhadas” e “mulheres da vida”. Ficou famosa, mas também exigente.


O mar de rosas (ou de Rosa) findaria quando ela começou a discutir com o clero carioca, pois achava que eles davam maus exemplos, falando demais e desrespeitosamente durante o culto. Pelo mesmo motivo retirou à força da igreja de Santo Antônio uma dama da sociedade, foi denunciada ao Bispo, presa e mandada para Lisboa junto com o padre ‘Xota-Diabos” para ser ouvida pelo Santo Ofício de Lisboa. Uma vez lá ela insistiu em reafirmar as visões. O padre declarou ter sido enganado de boa-fé pela falsidade da negra e recebeu como pena o degredo de cinco anos no sul do Algarve. E ela...bem, o processo se encerra inexplicavelmente m 4 de julho de 1765 e os historiadores levantam a hipótese de que morreu incógnita nas masmorras da Inquisição.


Madre Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz é ‘Flor do Rio de Janeiro’... e flor da cor!


Referências: 

MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil
GUIMARÃES, Rosely Santos. Corpo Negro: Entre a história e a ficção. O caso de Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz.